São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2011

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CINEMA

O durão desarmado e a bonequinha de luxo

As personas cinematográficas de Bogart e Hepburn

RESUMO Audrey Hepburn e Humphrey Bogart tornaram-se ícones do século 20: ele como o "durão" que não precisa de arma; ela como a mulher hedonista que democratizou o glamour. Biografia de Bogart e livro sobre "Bonequinha de Luxo" explicam como ambos forjaram a imagem moderna do homem e da mulher.

LUÍS FELIPE SOBRAL

No início de "Sabrina" (Billy Wilder, 1954), o magnata Humphrey Bogart salva a suicida Audrey Hepburn, vítima da desilusão amorosa. (Não é preciso dar nomes aos personagens: o que interessa ao público é que se trata de Bogart e Hepburn.) Ao longo do filme, Bogart encarna, nos termos da comédia romântica, sua tradicional "persona" cinematográfica.
No intuito de fechar um negócio milionário, finge se apaixonar por Hepburn, a sofisticada filha de motorista recém-chegada de um período em Paris; tudo para impedir o romance entre ela e seu irmão playboy, cujo casamento com uma herdeira da alta sociedade é a peça-chave para fechar o negócio.
Ora, o público não se surpreende ao constatar que, por trás dessa fachada cínica e indiferente, Bogart se torna presa de sua armadilha. (Quem poderia resistir a Audrey Hepburn?)
No final, ela é quem o salva de sua rotina fria e calculada de homem de negócios.

PERSONAS Bogart (1899-1957) e Hepburn (1929-93) são dois bons exemplos da dependência de Hollywood em relação ao "star system", pautado na elaboração de "personas" cinematográficas, isto é, na imagem que se vincula a cada artista através de uma série de personagens. O princípio de verossimilhança dos filmes repousava na crença de que cada artista fosse de fato sua persona. (Para tirar a prova, basta tentar imaginar Bogart como herói de capa e espada ou Hepburn como Cleópatra.)
O escritor americano Raymond Chandler (1888-1959) afirmou que Bogart podia ser durão sem uma arma. Ele tem razão; todavia, é necessário dar alguns passos além dessa observação.
De fato, o epíteto "durão desarmado" descreve melhor a persona cinematográfica do ator: no momento em que sua fleugma se mostra incontornável, ele revela sua vulnerabilidade.
Na época de "Sabrina", o público já estava familiarizado com a persona de Bogart, que, ao ser elaborada no início da década de 1940, forneceu-lhe uma posição estável na indústria hollywoodiana, ao mesmo tempo que o tornou refém dela, repetindo essa fórmula narrativa até o final de sua vida, em 1957. Assim, a graça de Bogart, muito mais do que ser durão (armado ou não), reside no momento em que é desarmado, ou seja, em que se mostra vulnerável.

BIOGRAFIA A frase de Chandler dá título à mais recente biografia dedicada ao ator: "Tough Without a Gun - The Life and Extraordinary Afterlife of Humphrey Bogart" [Durão sem Arma - A Vida e a Extraordinária Além-Vida de Humphrey Bogart, Alfred A. Knopf, 290 págs., U$ 26.95, R$ 43,88], de Stefan Kanfer.
O autor não apresenta nada sobre a vida de Bogart que já não tenha sido narrado nas inúmeras biografias precedentes: a infância privilegiada no Upper East Side, o fracasso escolar que o impediu de ir para Yale, o início atrapalhado da carreira na Broadway, as incursões a Hollywood nos primeiros anos do cinema falado, a produção industrial de sua persona cinematográfica, o encontro e o casamento com a atriz Lauren Bacall, a resistência à caça aos comunistas da indústria cinematográfica.
Portanto, no âmbito biográfico, a referência ainda é o "Bogart" de Ann M. Sperber e Eric Lax (William Morrow, 1997) e o "City Boys" do historiador cultural Robert Sklar (Princeton University Press, 1992), que compara as trajetórias cinematográficas de Bogart, James Cagney (1899-1986) e John Garfield (1913-52) a partir dos tipos urbanos nos quais se especializaram.
A faceta mais interessante da biografia de Kanfer reside na ideia de "além-vida". Como essa forma específica denominada Humphrey Bogart persiste ao longo do tempo, mais de 50 anos após a sua morte, como um ícone cultural inquestionável? (Bogart foi escolhido recentemente, pelo American Film Institute, como "a maior lenda masculina na história do cinema".)
Parte da resposta passa por "Acossado" (Jean-Luc Godard, 1960), no qual o ladrão Jean-Paul Belmondo toma "Bogie" por ídolo; ou ainda por "Sonhos de um Sedutor" (Herbert Ross, 1972), no qual o neurótico Woody Allen aceita conselhos amorosos do fantasma de Bogart. Infelizmente, Kanfer dedica apenas os dois últimos dos dez capítulos a essa questão interessantíssima.
Em grande medida, ele se preocupa ingenuamente em singularizar a imagem do biografado: observa que nunca haverá outro Bogart e reclama que Hollywood não produz durões como antigamente. Argumenta que a idade do público cinematográfico caiu bastante desde os anos 1940: esse seria o principal motivo para que não se produzam mais figuras enrugadas e amarrotadas como Bogart. No entanto, ele não convence o leitor e sacrifica sua melhor questão ao tom laudatório e nostálgico comum em biografias.

MAKING OF Muito mais interessante é "5ª Avenida, 5 da Manhã - Audrey Hepburn, 'Bonequinha de Luxo' e o Surgimento da Mulher Moderna" [trad. José Rubens Siqueira, Zahar, 156 págs., R$ 39], de Sam Wasson. Trata-se de uma espécie de "making of" refinado de "Bonequinha de luxo" (Blake Edwards, 1961), filme que está sendo relançado em DVD por ocasião dos 50 anos de estreia.
Wasson se valeu da própria linguagem cinematográfica contemporânea, e, em particular, da linguagem dos trailers, para apresentar seu livro, "estrelado" por Audrey Hepburn, "como a atriz que queria um lar", Truman Capote, "como o Romancista que queria uma mãe", Marty Jurow e Richard Shepherd, "como os Produtores que queriam fechar um contrato pelo valor certo com as pessoas certas e fazer o melhor filme possível", e assim por diante.
Todos esses personagens circulam na Manhattan dos anos 1950 e começo dos 1960, entre a loja da Tiffany na Quinta Avenida onde se gravou a primeira cena do filme, a célebre boate "El Morocco" onde Marilyn Monroe dançou com Capote, o restaurante Colony, onde Jurow ganhou os direitos para produzir o filme, e muitos outros.
Ao circunscrever um intervalo de dez anos, dos primeiros movimentos de Capote para escrever a história na qual se pautou o roteiro, passando pela descoberta de Audrey Hepburn em um hotel de Monte Carlo até a recepção do filme, Wasson compõe uma verdadeira crônica da produção.
Não apenas: ao colocar em cena o universo de figuras que estavam envolvidas, em maior ou menor grau, com o filme (socialites, escritores, produtores, atrizes e atores, roteiristas, diretores, estilistas), esboça um retrato de um importante episódio da história cultural hollywoodiana.

FRAGMENTOS Wasson procede por meio de fragmentos, mudando constantemente o foco narrativo através dos diversos episódios que compõem a história da produção de "Bonequinha de Luxo". Nesse sentido, mostra como o cinema hollywoodiano é produto de uma intrincada divisão social do trabalho que se desenvolve em meio aos mais diversos interesses; portanto, nada do que o público vê na tela -nem mesmo a performance do artista- deve-se exclusivamente a um indivíduo.
Holly Golightly, a protagonista da história de Capote, é uma prostituta hedonista e individualista que preza sua liberdade acima de tudo. Ela anuncia temas decisivos da geração seguinte; porém, na passagem entre os anos 1950 e 1960, ainda era vista como uma "outra": Capote já era um escritor de renome e mesmo assim sua história foi recusada pela revista "Harper's Bazaar". O filme e Hepburn mudariam esse quadro, explica Wasson, interessado em responder à questão: "como 'Bonequinha de Luxo' levou o público americano a ver que a garota má era na realidade uma garota boa?".
Hepburn não se encaixava no padrão de beleza da época (o modelo era a voluptuosa Marilyn Monroe): tinha pés grandes, pernas e pescoço longos demais, sobrancelhas grossas e, sobretudo, era magérrima. Nos filmes, comportava-se como toda garota deveria se comportar; porém, disfarçados pelo glamour, contrabandeava pequenos gestos subversivos.
Em "A Princesa e o Plebeu" (William Wyler, 1953), ela corta o cabelo curtíssimo; em "Sabrina", bagunça a rotina da alta sociedade em trajes assinados por Givenchy; em "Bonequinha de Luxo", salta do táxi, na madrugada de Nova York, em um vestido preto de noite (outro Givenchy) para tomar café da manhã diante da vitrine da joalheria Tiffany's.

GLAMOUR "De alguma forma", afirma Wasson, "apesar da falta de dinheiro e da linhagem interiorana, Holly Golightly conseguia ser glamourosa". Tal artifício repousava na simplicidade dos trajes, que se afastavam do glamour sofisticado acessível às estrelas de cinema, porém não a seu público. Assim, Hepburn mostrava que o glamour não era privilégio da classe social mais alta; ao vinculá-lo ao gosto individual, rompeu a dicotomia perversa que classificava as mulheres entre "putas" e "donas de casa imaculadas".
Era possível manter a própria individualidade sem se tornar prisioneira de uma dessas categorias, ou, nas palavras do autor, "morar sozinha, sair, andar linda e ficar um pouco bêbada não era mais tão ruim. Ser solteira, na verdade, não parecia motivo de vergonha. Parecia divertido". Em suma, "o estilo [...] de Audrey era democrático".
Toda atitude depende da forma: através da persona de Hepburn, gestos pouco ortodoxos se tornavam bastante aceitáveis. O mérito cabe a ela, porém não exclusivamente. Hepburn não queria fazer o filme, mantinha uma série de restrições em relação a Holly, tinha muitas dúvidas quanto a sua capacidade de interpretá-la e não queria cantar "Moon River". Sem o trabalho da equipe de produção, o público não veria a Hepburn que se projeta na tela do cinema.
O mais importante (e difícil) é perceber que o artista e sua persona cinematográfica não são a mesma pessoa. A dificuldade reside justamente no fato de ambos compartilharem a mesma imagem. No final de 1960, o departamento de publicidade da Paramount, o estúdio que produziu "Bonequinha de Luxo", informou que o filme levantava a questão "mulheres de carreira vs. esposas" e anunciou que Hepburn prezava sua família antes de sua carreira. (De fato, dados biográficos confirmam que sua maior ambição era ter um marido, filhos e um lar.) O curioso é que o filme ainda estava em produção: trata-se do receio do estúdio com a má publicidade de uma personagem arriscada como Holly Golightly.
O mesmo vale para o caso de Bogart. Ele não é exemplo de um sujeito durão, cínico e individualista que termina afinal revelando sua faceta vulnerável; essa era sua persona. Na verdade, foi um ator que passou a maior parte da vida dançando conforme as regras do jogo cinematográfico, mesmo depois de bem estabelecido em Hollywood. As personas cinematográficas de Bogart e Hepburn não dependiam somente de seus intérpretes; são sobretudo produtos do mais elaborado artifício, e apenas o sistema industrial de Hollywood foi capaz de produzi-las e explorá-las.

Bogart e Hepburn são exemplos da dependência de Hollywood em relação ao "star system", pautado na imagem que se vincula artistas a uma série de personagens

Audrey Hepburn não se encaixava no padrão de beleza da época: tinha pés grandes, pernas e pescoço longos demais, sobrancelhas grossas e, sobretudo, era magérrima

Humphrey Bogart não é exemplo de um sujeito durão, cínico e individualista que termina afinal revelando sua faceta vulnerável; essa era sua persona cinematográfica

O mais importante é perceber que o artista e sua persona não são a mesma pessoa. A dificuldade reside justamente no fato de ambos compartilharem a mesma imagem


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