São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2010

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PERFIL

Em cima da muralha

Lijia Zhang, entre China e Ocidente

IISH / Stefan R. Landsberger Collections
Pôster oficial encomendado ao designer chinês Wang Bingkun em 1986

RESUMO
Ao narrar suas memórias da vida operária durante a adolescência nos anos da abertura econômica na China ao engajamento político nas manifestações de 1989, a jornalista Lijia Zhang optou por mostrar suas diferenças com o regime sem se tornar uma dissidente, atuando como uma ponte entre seu país e o Ocidente.

IZABELA MOI

NA SEXTA-FEIRA, o escritor chinês Liu Xiaobo foi lembrado, em Oslo, durante a cerimônia de entrega do Nobel da Paz. Lembrado porque não poderia estar presente para receber seu prêmio. Xiaobo é um dissidente "oficial" do governo de seu país, julgado e condenado a 11 anos de prisão.
Talvez por isso a jornalista Lijia Zhang insista em dizer o contrário. "Se você não se afirma dissidente, tudo fica mais fácil". Para ela, "Liu Xiaobo é irrelevante para o cotidiano das pessoas comuns em nosso país". E é no cotidiano que ela acredita que está a verdadeira luta pela liberdade.
Lijia tornou-se adulta nos anos 80, quando a China investiu na transição para o sistema capitalista, liberando as amarras do controle individual para poder estimular valores como empreendedorismo e consumo. A morte de Mao Tse-tung (1893-1976) marca o fim da Revolução Cultural e o novo líder do partido único, Deng Xiaoping, implementa, a partir de 1978, as reformas econômicas que conduzirão o Império do Centro à posição atual: a segunda maior potência econômica do mundo.
Em seu "A Garota da Fábrica de Mísseis - Memórias de uma Operária da Nova China" [trad. Roberto Grey, Reler Editora, 416 págs., R$ 49], Lijia relata, acima de tudo, sua busca por liberdade, que, como os jovens que viveram os anos 60 no Ocidente, começou pelos relacionamentos amorosos. Seu cotidiano na fábrica é o pano de fundo para narrar as transformações por que passou enquanto seu país também mudava.
Suas memórias, escritas em inglês, foram publicadas em 2008 nos EUA, no Reino Unido, na Índia e na Austrália, e no ano seguinte ganharam tradução para o holandês e o italiano. Em 2010, saiu na França, na Coreia do Sul e, em meados de setembro, no Brasil.

DESOBEDIÊNCIA O governo chinês "não gosta" do livro, como ela diz. "Uma pena", completa. Além do relato de sua constante desobediência às regras sociais de conduta "comunista", Lijia explica que a mera menção aos movimentos democráticos de 1989 impedem a publicação de "A Garota da Fábrica de Mísseis" em sua língua.
"Quando lancei meu livro nos EUA, saiu uma resenha -nem tão positiva assim- no 'New York Times'. Um amigo me avisou, e percorri as bancas onde poderia comprar imprensa estrangeira. Todos os exemplares do jornal estavam com a página da resenha arrancada. Mas arrancada à mão mesmo. Tinha sido censurada."
Na China, a edição americana só é distribuída no mercado negro, numa única livraria na capital chinesa -cujo nome Lijia se recusa a dizer. "A dona é amiga minha e consegue trazer alguns títulos estrangeiros. Se eu a expuser, perderemos esse oásis."

FÁBRICA Com uma franqueza que beira a ingenuidade, Lijia Zhang relata os dez anos (de 1980 a 1989) em que trabalhou como operária numa fábrica estatal de armamentos em Nanquim, a capital do sul do país.
Aos 16, foi obrigada pela mãe a abandonar o ensino médio para ocupar a "vaga" dela como operária na fábrica. A política de "dingzhi", que garantia a transmissão de pai para filho (ou mãe para filha, neste caso) dos empregos públicos, estava ameaçada: rumores diziam que, com as mudanças econômicas, aquele seria o último ano de vigência dessa política de "herança". Para garantir um futuro estável à filha caçula, Yufang se aposentou precocemente.
Lijia viverá, até completar 26 anos, dentro das regras impostas pelo cotidiano de uma grande fábrica, dia após dia, das 8h às 17h15.
A Liming, nome fictício do complexo militar-industrial em que trabalhou ao lado de 10 mil outros operários, foi pioneira no setor bélico chinês. O prédio mais antigo, que data de 1886, é um vestígio dos primórdios da industrialização do país, impulsionada pela derrota na Guerra do Ópio, no século 19, contra a Inglaterra.
Na época, produzia canhões, armas, peças de artilharia e balas de canhão. Nos anos 70, com a ajuda da União Soviética, os chineses começaram a produzir mísseis de longo alcance "para atingir os EUA". Na fábrica, a preocupação com a segurança está por todos os lados -assim como os cartazes e dizeres patrióticos estampados nas paredes.

MARASMO Como na economia planejada da China comunista o pleno emprego era não apenas um objetivo longínquo, mas uma meta a ser cumprida, muitas vezes estar empregado não significava estar realmente ocupado. Ao contrário do que se possa imaginar, Lijia não tinha uma rotina extenuante na fábrica.
Em sua seção, além das tarefas serem leves (ela cuidava da manutenção dos medidores de pressão), não havia atividade suficiente para os cinco operários que dividiam o pequeno escritório. Ir encher o bule coletivo com mais chá durante a tarde era uma oportunidade de quebrar o marasmo. "Não fazer nada o dia todo era surpreendentemente cansativo", ela escreve.
Em seus anos de operária, Lijia nunca recebeu uma promoção. Seu chefe achava que ela fazia permanente -pois tinha o cabelo (naturalmente) ondulado-, o que era sinal de vaidade, um valor burguês. No código de conduta oficial, uma funcionária com permanente não teria a "retidão ideológica" necessária a um operário exemplar. "O conceito de individualismo era novo para nós. Tudo na China, na cultura chinesa, sempre foi o coletivo. Desde Confúcio."
1989 As memórias de Lijia terminam em 1989, ano famoso no mundo inteiro e censurado no próprio país pelo mesmo motivo: as manifestações estudantis que se espalharam pela China pedindo mudanças, liberdade e democracia.
Naquele ano, Lijia organizou, com dois outros colegas da fábrica (da juventude comunista!), o que seria a maior manifestação de trabalhadores em apoio aos estudantes, reunindo milhares de pessoas na praça principal de Nanquim, no final de maio. Quatro dias depois, os movimentos por liberdade e democracia culminaram na tragédia da praça Tiananmen (ou da Paz Celestial), quando o Exército Popular de Libertação abriu fogo contra os manifestantes, em 4 de junho. Estima-se que mais de 3.000 pessoas foram mortas; outros milhares foram presos e muitos fugiram do país.
Lijia Zhang foi interrogada pela polícia, mas não foi presa. Menos de um ano depois, em 1990, escondida da família, deixou a fábrica e foi para Londres ao lado do namorado, com quem iria se casar logo depois. Foi no Reino Unido que finalmente entrou na universidade, no curso de jornalismo.

FRACASSO Hoje, aos 46, é considerada um fracasso por sua mãe. Divorciada (!) aos 41, com duas filhas -May, 13, e Kirsty, 11- do casamento com um estrangeiro (outra "vergonha"), o jornalista britânico Calum MacLeod, e trabalhando como freelancer desde 1993, Lijia não tem nenhum dos símbolos de sucesso que a geração anterior à sua valoriza.
E o que mudou na China hoje? "A vida material melhorou muito. Eu e meu irmão comíamos cigarras no verão. Fazíamos churrasquinhos ao ar livre. Não que gostássemos. Mas a carne era tão rara e racionada, que sempre tínhamos fome. Hoje, não consigo desperdiçar comida. Nunca. Quando minhas filhas eram pequenas, ganhei muito peso, porque nada ia para o lixo. Aliás, sempre me pergunto o que será delas. Tudo hoje é tão mais fácil."
Lijia trabalha em sua casa, na região central de Pequim. Colabora para publicações da estatura do "New York Times", "Washington Post", "Guardian" e "Newsweek". Também apresenta um programa de entrevistas na rede americana de TV a cabo Blue Ocean, com programação exclusivamente sobre a China. "As pessoas têm muito medo dos chineses. Mas eu acho que tudo é apenas fruto da ignorância. Meu objetivo é esse mesmo: ser uma ponte entre o resto do mundo e a China."
Apesar do patriotismo alardeado e da não adesão à dissidência "oficial", Lijia tem opiniões bastante complexas sobre seu país. "Tantos anos vivendo sob o controle de um regime socialista me ensinaram a não acreditar cegamente em nenhuma religião 'organizada', e isso inclui a religião do Estado. O partido comunista chinês está agora com um discurso sobre construir uma 'sociedade harmônica'. É mais um sinal de que mudanças, outras, novas, vêm por aí. Mas a chegada da 'grande democracia' à China, como dizemos, ainda vai demorar."
O Brasil, que conheceu em setembro, quando veio lançar seu livro, foi sua primeira aventura sul-americana, apesar de ter se tornado uma viajante voraz. Em suas memórias, conta que foi a primeira da família a sair de Nanquim e viajar mais de 1.000 km para conhecer a capital chinesa.
"O povo chinês vive razoavelmente livre hoje em dia. E sente-se feliz. A gaiola cresceu tanto a ponto de ainda estarmos colhendo os frutos dessas novas e bem-vindas liberdades individuais. Ainda vai demorar até chegarmos, de novo, aos limites da gaiola", diz. "1989 foi o ano mais extraordinário da minha vida, cheio de grandes acontecimentos em grandes sonhos. Mas vai demorar muito a se repetir. Enquanto isso, a democracia não virá, não enquanto a população está satisfeita e distraída em ganhar dinheiro".

Lijia tornou-se adulta nos anos 80, quando a China fazia a transição econômica, reduzindo o controle individual para estimular valores como empreendedorismo e consumo


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