São Paulo, domingo, 13 de março de 2011

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FOTOGRAFIA

Depois da chuva

Lama na sala de estar

RESUMO
Edu Marin Kessedjian registrou, para a revista "Serrote", a recente destruição causada pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro. Com viés estetizante, o ensaio fotográfico evoca o de Polidori na Nova Orleans devastada pelo furacão Katrina e o de Marchand e Meffres na Detroit destruída pela decadência econômica.

MARCELO COELHO

EM SETEMBRO de 2005, menos de um mês depois da passagem do furacão Katrina, o fotógrafo canadense Robert Polidori esteve em Nova Orleans para registrar cenas da destruição. Voltou outras vezes para os bairros mais atingidos, nos meses seguintes. Suas fotos de Nova Orleans chegaram a ser expostas em São Paulo, no Museu da Casa Brasileira, ao lado de outras, igualmente impressionantes, que retratavam escolas, creches e instalações industriais abandonadas depois do desastre de Chernobyl, e os prédios-fantasmas do centro de Havana.

O estilo fotográfico de Polidori -cenas do interior das casas atingidas, sem nenhuma pessoa à vista- foi repetido agora por Edu Marin Kessedjian, a propósito das enchentes e desabamentos na região serrana do Rio de Janeiro.

RELÍQUIA Apesar da evidente semelhança de projeto, há algumas diferenças importantes na abordagem do fotógrafo brasileiro. Ele chega mais perto das coisas. A visão "clínica" e "sociológica" de Polidori, mostrando a sala de estar completa de uma família negra, à altura do olho, atulhada com os sofás, aspiradores, raquetes, luminárias e videocassetes que se acumularam ao longo de décadas de consumismo pobre e de breguice, dá lugar a um enfoque mais religioso, talvez, no fotógrafo brasileiro. Ele parece registrar menos as cenas de um grande naufrágio doméstico do que uma ou outra coisa que escapa, como relíquia, do dilúvio.

A cortina (ou toalha de lavabo) branca, num suave desenho xadrez, onde se estende a estampa de algumas flores amarelo-escuras, está ainda pendurada na parede, e guarda até a metade de baixo a marca cinzenta, cor de concreto armado, da lama que tomou conta de tudo. A parede de trás também está coberta de um reboco de lama, num nível um pouco mais elevado. A linha de barro parece delimitar na parede branca um novo chão, um novo horizonte para os olhos, acima do qual respingos, espirros, fiapos e hastes se alteiam, como uma apressada pintura que retratasse, em cinza, os caules e corolas das mesmas flores amarelas da toalha.
O paradoxo, naturalmente, está no fato de que toalhas servem para enxugar, para limpar, e esta (ou será cortina?) encharcou-se de lama antes mesmo de poder cumprir sua função.
Kessedjian gosta de escolher, com efeito, ladrilhos brancos, paredes de banheiro ou de cozinha, como se fossem o fundo mais improvável para a sujeira gigantesca que desceu da encosta.

CADÁVER Solto, por vezes, no meio desse ambiente, um único objeto assume a posição trágica de uma vítima, de um cadáver. O fogão, caído sobre o assoalho como um robô assassinado, representa bem esse papel. Ao contrário das acumulações, das multidões de objetos imprestáveis embolados nas fotos de Robert Polidori, aqui cada casa devastada parece lamentar a perda de um objeto raro e querido, quase de um único bem, como se fala de um único parente, de um arrimo de família: o fogão, sozinho, representa "tudo", e esse tudo é o que se perdeu. Assume as características de uma morte na família.
Esta descrição exagera, sem dúvida, a pobreza de todos os atingidos pelas tragédias em Petrópolis e outros lugares. Sabemos que, desta vez, mesmo casas de veraneio de gente rica foram destruídas pelo temporal. Ainda assim, o conteúdo "de classe" dessas fotos não nos engana, na maior parte das vezes.
As cadeiras em fila, brancas, como se de uma sala de espera de consultório popular, ou daquelas que a gente de antigamente punha na calçada, ao fim da tarde, no lazer de simplesmente ver o movimento dos que passam pela rua, estão a postos em outra imagem de Kessedjian. Mas é como se estivessem encostadas no paredão de um fuzilamento. O barro, atrás, parece sangue espirrado depois de uma carga de metralhadora. Vê-se, sem dúvida, tudo como se fosse o cenário de um crime.

CHACINA Também as fotos de Polidori, no seu silêncio, no seu aspecto de prova criminal, de evidência forense, parecem repetir, em cores vibrantes, aquilo que o crítico Walter Benjamin falava a respeito das fotos de Paris em preto e branco, tiradas por Eugène Atget (1857-1927) em plena "belle époque". Só que, nas imagens do francês, o crime parecia um tema para contos policiais. Nas casas destruídas de Polidori, e mais ainda nas fotos de Kessedjian, o "décor" é de uma chacina, de um assassinato em massa.
Nesses fotógrafos, assim como na extraordinária obra de Yves Marchand e Romain Meffres mostrando as ruínas dos teatros e hotéis de luxo de Detroit, o lance estético está, naturalmente, em não colocar nenhum ser humano diante da câmera. O desastre econômico de Detroit, a pobreza inundada de Nova Orleans, o silêncio e as poças d'água de Paris se expõem sem que nada mais se mova, sem que nada permita um gesto de proximidade. A cortina, o fogão, o objeto isolado das fotos de Kessedjian talvez tenham menos esse espírito panorâmico, de visão distante. Cada coisa ainda será recolhida, não será abandonada.
Numa parede, a imagem em alto-relevo da Sagrada Família resiste ao vagalhão de chuva, de pedra e lama que tingiu a pintura de vermelho. Manchas que parecem de sangue se misturam a machucados mais antigos do reboco, e se espalham sobre a parte da parede que ainda está pintada de verde. A foto evoca, afinal, não o Menino Jesus da domesticidade católica, mas sim a imagem, igualmente religiosa, de um sudário.
Suor e sangue de coisas, de móveis, de eletrodomésticos não deixam esquecer o sofrimento dos atingidos pela enchente. As fotos brasileiras não têm o valor sociológico, documental, nem o tom frio, vidrado, de sua contrapartida norte-americana. Sentimentalizam-se um pouco? Dramatizam-se, talvez, com maior crueza, como um filme de José Padilha perto dos bizarros deslocamentos de David Lynch? Difícil dizer. Melhor não dizer mais nada, aliás. As imagens já superpuseram sua estética ao acontecido; mais comentário já atulharia demais essas ruínas.

Nota do editor
O ensaio fotográfico será publicado na sétima edição da "Serrote", do Instituto Moreira Salles, que chega às livrarias nesta segunda-feira.


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