São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2010

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CRÍTICA

O caminho da pedra

A divertida chateação de Drummond

RESUMO
Ícone modernista, o poema "No Meio do Caminho" despertou apaixonadas reações, a favor ou contra, que Carlos Drummond de Andrade colecionou e reuniu em livro, em 1967. Nova edição de "Biografia de um Poema" recupera passagens cômicas e suscita reflexões sobre acertos e erros da crítica feita no calor da hora.

BERNARDO CARVALHO

O ERRO HISTÓRICO é sempre tão mais fascinante e tão mais estúpido por nunca ser nosso. E porque nos põe automaticamente do lado dos justos. Ninguém recusaria publicar um livro de Beckett (tantas vezes recusado) se soubesse que estava com um livro de Beckett nas mãos. O consenso a posteriori tem o gosto fácil da vingança. Como se graças a ele já não pudesse haver injustiça nem cegueira nem burrice no mundo. E assim seguimos burros, cegos e injustos.
Nos anos 90, a editora francesa La Dilettante fez questão de estampar na contracapa de uma novela de Emmanuel Bove (1898-1945), como provocação, a sentença que o padre Louis Bethléem (quem?) reservara ao escritor em seu manual de "Romances a Ler e a Proscrever", de 1932: "Emmanuel Bove [...] traz para a literatura todos os excessos eslavos. Seus romances, terrivelmente mal escritos, exalam um pessimismo pavoroso e chafurdam na abjeção".
Com tamanha publicidade negativa, ficava difícil resistir. Ainda mais para quem sabia quem era Emmanuel Bove: coincidentemente, o mesmo escritor citado por Beckett quando lhe perguntaram, 40 anos antes, o nome de um desconhecido injustiçado cuja leitura ele considerava indispensável.

GRAÇA Carlos Drummond de Andrade (1902-87) publicou, em 1967, uma seleção de textos alheios (em mais de um sentido) cujo maior interesse (e graça) era o erro histórico -embora também tenha incluído na lista exaustiva de comentários e menções ao seu famigerado poema "No Meio do Caminho", escrito 40 anos antes, uma quantidade significativa de acertos.
O Instituto Moreira Salles relança agora, dia 24/11, no Rio, a compilação "Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema" [344 págs., R$ 50 ] em nova edição ampliada, a cargo do poeta Eucanaã Ferraz, que escreveu o prefácio e incorporou textos sobre o poema e sobre o próprio livro posteriores a sua publicação (Ferraz já havia organizado uma primorosa edição crítica e fac-similar da antologia de estreia do poeta, "Alguma Poesia", também pelo IMS).
Não se pode dizer que Drummond e seu poema, alvos dos ataques mais estúpidos, assim como dos maiores elogios, saiam diminuídos da reprodução extemporânea dos equívocos. Ao contrário, são estes, mais do que os acertos, que ganham de imediato a atenção do leitor, reconfortado com a confirmação da grandeza do poeta, agora ratificada também pelo escárnio do ridículo. O livro representa o final feliz de uma longa batalha entre o obscurantismo provinciano, condenado ao passado que buscava, e a inteligência da modernidade.

PANCADARIA O poema foi publicado pela primeira vez, em 1928, na "Revista de Antropofagia", órgão do movimento modernista, de pequena circulação. Não provocou nenhum tumulto. Em compensação, ao ser incluído dois anos depois no magnífico "Alguma Poesia", primeira coletânea do autor, deflagrou uma pancadaria. Durante anos, o poeta teve de suportar insultos e galhofas perpetrados por todo lado, nos bares, nos jornais e nas escolas, pelos arautos inflamados das convenções. Não reagiu publicamente.
Mas, na sua discrição inventariante, foi colecionando as pérolas. E sua vingança foi publicá-las em livro -ao lado dos elogios, é claro, para depois não ser acusado também de parcial. "Fiz da minha chateação um livro", declarou o poeta em depoimento citado no prefácio. "Ficou divertidíssimo."
É espantoso que um homem passe a vida colecionando o que se diz sobre um de seus poemas, que ele nem considera tão especial (embora, como ressalta Davi Arrigucci Jr., em texto de 2002 incluído na nova edição, esse seja o poema que inaugura o universo poético de Drummond). Só podia ter índole de arquivista e paciência de burocrata aplicado, como lembra o prefácio. Mas também ser muito zeloso da autoimagem, ou não se daria o trabalho de criar um arquivo só para ela.
Às vezes, bastava uma frase ou uma citação. A pedra podia aparecer em editoriais ou em discursos políticos, como no de Luís Carlos Prestes, em 45, no comitê nacional do Partido Comunista. Os versos passaram a servir de exemplo para tudo -o que só torna o resultado da obsessão do poeta ainda mais admirável num mundo anterior ao automatismo das "ferramentas de busca".

PATUSCO Alguns dos comentários mais imbecis mereciam mesmo ser imortalizados. O pecado de errar no elogio do medíocre não tem as mesmas consequências de quem peca por desancar o que vai se consagrar na história: "Homem! E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela?", ou "Que fique como marca indelével de uma fase de loucura da literatura brasileira".
Drummond foi chamado de "beletrista mineiro", "patusco", "pedregoso", "poeta perereca" e "poeta cavouqueiro". O que só faz evidenciar a força do poema: retrospectivamente, positiva ou negativa, a crítica acabou trabalhando sempre a seu favor.
O poeta não era um desconhecido. "O poema da pedra [...] é tão sucessoso que se tornou um lugar-comum elogiá-lo", escreve Paulo Mendes Campos, em 1930, quando Drummond, autor de um único livro, já era considerado "um dos grandes poetas do Brasil". Sua figura pública, como chefe de gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema, entre 1934 e 1945, em pleno Estado Novo, só vai acirrar os ânimos dos detratores.
Como se depreende da compilação obsessiva das críticas, Drummond nunca teve dúvida quanto ao caminho a seguir. Seu poema, por outro lado, dependia do princípio de incerteza e de ambiguidade próprio da poesia moderna, afirmando-se pela negação das convenções poéticas: o isomorfismo da monotonia da repetição dos versos sobre uma pedra no meio do caminho para dizer o cansaço e a monotonia da vida. Não havia beleza nem pomposidade. A "deficiência" era a sua qualidade (a língua brasileira contra a norma culta do português, os versos reiterativos, o acontecimento trivial). A qualidade era ao mesmo tempo a sua vulnerabilidade. O erro e a ignorância da crítica faziam parte de uma campanha deliberada dos adversários do modernismo.

OBTUSIDADE Numa resenha sobre o livro incluída no final da nova edição, o ensaísta português Eduardo Prado Coelho dá o diagnóstico da obtusidade antimodernista: "O principal motivo de reação se baseia numa confusão entre informação semântica e informação estética. [...] Pensam que a arte deve ser uma informação semântica duma realidade estética, e não uma informação estética da realidade". Criticam o poema porque fala de pedra. E julgam a pedra um objeto pouco poético.
Tudo estaria resolvido para os antimodernos se o poema fosse, como tentaram fazer crer, apenas uma piada. Mas era sério. Na apresentação à edição de 1967, Arnaldo Saraiva mostrava como a não ironia do poema acabou por torná-lo muito mais perturbador do que se Drummond tivesse escrito simplesmente um poema satírico: "A ironia tem o condão de amortecer o choque da novidade". A ironia implica uma distância crítica.
E assim, por uma lógica talvez não premeditada, o crítico literário português acabava sugerindo que, por mais inédito e divertido que fosse, esse segundo momento (o da reunião dos ataques e elogios em livro, momento da consagração e da vingança do autor) era menos interessante e rico do que o primeiro momento, da novidade e da ruptura (quando ainda havia vulnerabilidade e algum risco para o poema).

ESFINGE A primeira edição de "Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema" estampava na capa uma foto da esfinge de Gizé. A ironia anedótica da imagem (pedra e enigma a ser desvendado) indicava ao leitor que ele já não estava no terreno da dúvida, mas no da consagração, da distância crítica. A imagem tinha efeito de piada, tanto quanto os comentários involuntariamente risíveis, muitos deles grotescos, no interior do livro -um livro que, com o perdão do truísmo, não faria sentido, nem teria a menor graça, se não houvesse consenso em torno do fato de o poema ter afinal vencido seus detratores.
É claro que não é essa a questão do livro, mas nem por isso ele deixa de fazer pensar que o alívio promovido pela consagração do justo e pela ridicularização do erro, embora resultado de um esforço de inteligência, pouco contribui para que vejamos melhor como a estupidez se renova e se dirige a novos objetos.
A cegueira é sempre outra. A pedra de Drummond já não atravanca o caminho de nenhum crítico (o que é um avanço), nem mesmo daquele que corresponde hoje ao antimodernista da época do poema. E que certamente seguirá se deleitando com um livro divertido como esse, identificando-se com a boa crítica (porque ninguém quer se identificar com imbecis), no conforto da chancela da história, pronto para perpetrar novos estragos no presente.

Não se pode dizer que Drummond e seu poema saiam diminuídos da reprodução extemporânea dos equívocos. Ao contrário, são estes, mais do que os acertos, que ganham de imediato a atenção do leitor

Como se depreende da compilação obsessiva das críticas, Drummond nunca teve dúvida quanto ao caminho a seguir. Seu poema, por outro lado, dependia do princípio de incerteza e de ambiguidade próprio da poesia moderna


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