São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

É sempre hoje quando perdemos alguém

Rio de Janeiro, 1988

ARMANDO FREITAS FILHO

Alvinegro. Noite e dia.
Penso em ti, te espero ainda no risco de sua vida.
No pico, onde pisca a dura estrela solitária.1

EM 1988, TITE DE LEMOS e eu fomos levar à editora Nova Fronteira os originais dos nossos livros, "Bella Donna" e "De Cor", respectivamente. Seria o nosso terceiro lançamento juntos.
Em 1979, começamos uma parceria que só veio incrementar nosso conhecimento antigo com uma amizade nova em folha. Naquele ano ele lançou "Marcas do Zorro" e eu, "À Mão Livre". Em 1985, escrevi o prefácio para "Corcovado Park", que o meu "3x4" acompanhou. Todos esses livros foram publicados pela Nova Fronteira de Sergio e Sebastião Lacerda, onde o editor Pedro Paulo de Sena Madureira os ajudava de perto, com sua "expertise" literária. Os nossos livros de 1979, junto com "Aliança", de Marly de Oliveira, inauguraram a coleção Poiesis, iniciativa pioneira de publicar poesia de autores em período de crescimento, digamos assim, por uma editora de renome.
Mas, voltando a "Bella Donna", o que tenho a dizer é que acompanhei a montagem desse livro, passo a passo. A capa reproduz uma excelente foto de Piedade Castello- Branco, mulher de Tite, flagrada, ao ajeitar o cabelo à nuca, defronte do mar de Búzios. Posso sentir o momento do vento permanente daquela praia surpreendendo o penteado de Piedade.
A exigência editorial dos originais é grande: há poemas impressos em duas cores, há ilustrações feitas por retalhos de uma espécie de malha alfabética que falha na impressão, preto no branco, e coloridas, como os perfis desenhados de uma menina e de um menino fechando o volume; há páginas em branco, ou quase, que são como que a respiração e a hesitação do poeta e do poema; há dedicatória manuscrita, mudança de tipos; há, enfim, toda uma sinfonia gráfica silenciosa que o autor cultivava com seu ouvido fino.
Meu livro que iria acompanhar essa efusão era simples, comercial. Sabia o quanto "Bella Donna" significava para meu amigo, o quanto representava de amor e trabalho; como ele, em noites brancas, entre cálculo e acaso, o planejou. Pois não é que Tite, com o desprendimento que o caracterizava, abriu mão da "Bella" e, para harmonizar as edições e a noite de lançamento, apareceu com seu "Caderno de Sonetos", com a tinta dos seus versos ainda fresca?
Vinte e dois anos depois, o editor Jorge Viveiros de Castro ouviu e sentiu fielmente as intenções do poeta e as reproduziu na edição que a 7Letras acaba de publicar, quando celebramos, enfim, a visibilidade pública de "Bella Donna".
A nossa última noite de autógrafos foi na Livraria Timbre, no Shopping da Gávea. Uma caravana de amigos passou por lá. Me lembro da força que sua presença me dava para enfrentar essa maratona de fazer dedicatórias apropriadas, de driblar os esquecimentos de nome e pessoa. Me lembro também da sua presença serena e intensa na minha vida, na sua elegância inata, de como podia guiar automóvel tão bem depois de tantos copos, de tantas taças.
De repente, me lembro do seu telefonema terrível quando disse para Cristina, minha mulher, e para mim, com sua bela voz inalterada, o diagnóstico do médico e de quanto tempo lhe restava: um mês. Me lembro desse mês horrível, da edição urgente de "Outros Sonetos do Caderno", do comentário, escrito de uma só tacada, de Otto Lara Resende, para os orelhas do volume, do desenho de um insólito pterodáctilo de Roberto Magalhães que ele ainda viu voando na prova da capa.
Me lembro como se fosse hoje, pois é sempre hoje quando perdemos alguém tão querido, da dor de sua perda, da dor por ele não ter visto o seu Botafogo ser campeão depois de tanto tempo.
Não consigo esquecer do minuto de silêncio pedido pelos alto-falantes do Maracanã em sua homenagem, antes da partida decisiva.


Nota
(Poema de Armando Freitas Filho em homenagem ao poeta Tite de Lemos, publicado originalmente no seu livro "Números Anônimos", ed. Nova Fronteira, 1994)



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