São Paulo, domingo, 15 de maio de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Road movie Sganzerla

Califórnia, 1989

Arquivo pessoal
Em sentido horário: Rogério Sganzerla, Djin, Helena e Sinai, em Santa Mônica

DJIN SGANZERLA

"SPOSA A VERONA in onore del papà". Me assustei ao ler a chamada no principal jornal da cidade italiana, no dia do meu casamento. Meu pai, Rogério Sganzerla, havia falecido dois anos antes. Lá estávamos eu e ele abraçados, em uma foto linda, sem eu ter a mais vaga ideia de como ela chegara à imprensa.
Mas recebi a reportagem como se meu pai me tivesse dado um beijo naquele dia especial. E nada mais simbólico do que se casar em Verona, cidade de personagens heroicos de Shakespeare, autor de cuja obra meu pai tirou meu nome.
No dia seguinte, passando por uma banca, vejo um dos filmes de Rogério de que mais gosto exposto para venda como um clássico: "Nem Tudo é Verdade". Imediatamente, voltei no tempo. Esse título tinha sido vendido para a TV italiana Rai anos antes, e o negócio financiou uma viagem em família, um verdadeiro "'road movie' Sganzerla".
Eu, então pré-adolescente, estudava com a minha irmã Sinai em Gainesville, na Flórida, e nossos pais foram nos visitar. Alugamos um carro e partimos para cruzar os EUA, até Los Angeles. Lembro da excitação e do olhar de garoto de meu pai. Guardo também a minha sensação de liberdade. Não havia algo que Rogério gostasse mais de fazer na vida do que cinema e viagens. Sem sabermos, esse périplo iria unir as duas coisas.
Íamos parando em várias cidades. Uma das escalas, Phoenix, tinha tudo para ser um dos ápices. Ali, visitamos uma grande loja de câmeras e lentes de cinema de segunda mão que haviam sido usadas nos faroestes de Hollywood. Meu pai listava as produções que tinham sido filmadas com aqueles equipamentos. Muitas vezes, conversava comigo como se já fosse adulta e especialista na área. Em outras, brincávamos como se ele fosse um menino imerso num mundo lúdico.
Escolhemos finalmente a câmera. Na hora de pagar, percebemos que a bolsa em que todo o dinheiro estava guardado havia sumido. Com a sensação clara e absoluta de uma catástrofe iminente, procuramos pela loja inteira. Nada.
O lugar já estava quase vazio quando um jovem bonito e musculoso aproximou-se para nos ajudar. Soubemos depois que era figurante em Hollywood. Levou-nos para a casa dos pais dele. Sem dinheiro nem para o hotel, passamos a noite debaixo daquele teto solidário.
No dia seguinte, recuperamos 15% do dinheiro (em travellers cheques) e seguimos para Hollywood. Fomos convidados para um almoço na Paramount por Bill Krohn, executivo do estúdio e também crítico, um dos primeiros colaboradores da revista "Cahiers du Cinema" nos EUA. Eu não queria ir: Hollywood era um nome que não me dizia muita coisa. Mas fui convencida. Passeamos por sets em que circulavam estrelas como Bruce Willis.
Serviram-nos uma refeição vegetariana especial, a alguns metros da mesa de Mel Brooks.
Bill Krohn havia convidado meu pai ao estúdio para mostrar os negativos recém-encontrados de "É Tudo Verdade", filme inacabado que Orson Welles veio fazer no Brasil. Rogério já era considerado um dos maiores conhecedores da obra de Welles e também achara uma parte desses negativos em Salvador e no Ceará, durante a pesquisa para "Nem Tudo é Verdade".
No último dia em Los Angeles, Rogério me mostrou o presente que havia ganhado de um amigo: uma caixa linda, repleta de fitas. Com um sorriso maroto, disse que se tratava de uma preciosidade. Na tampa, lembro uma inscrição clara: RKO, em letras grandes.
Ele estava certo. Havia ali gravações de conversas radiofônicas entre Orson Welles e Carmem Miranda: o cineasta arrisca o gogó num samba, a cantora o imita, os dois gargalham sem parar. Nascia ali um novo filme do meu pai, no qual esse material raro seria utilizado: "Tudo É Brasil".
Um filme gerou nossa viagem, nossa viagem gerou um novo filme. Tudo o que Rogério tocava virava cinema.


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