São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Haroldo no círculo odara

São Paulo, 1973

LUCIA SANTAELLA

Em meus estudos de pós-gradução na Universidade Católica de São Paulo, nos anos 1970, fui aluna de Haroldo de Campos. Suas aulas e participações em bancas examinadoras eram deleites para o intelecto e para a sensibilidade. Mais para o final dessa década, tornei-me sua colega, também professora no programa de que fui previamente aluna. Nunca deixei a posição de discípula. Continuei a assistir a todos os seus cursos e palestras, inolvidáveis. No vigor de sua voz e na entonação belamente modulada de suas frases, exalava sua alma de poeta.
As aulas eram noturnas. Era tal o sentimento, uma espécie muito especial de êxtase pelo conhecimento, com que saía dessas aulas que, naquelas noites, não conseguia conciliar o sono. Sonhava na vigília, imantada na aspiração de um dia poder penetrar no círculo alquímico da palavra poética.
Por algumas décadas pude também gozar do privilégio de ser amiga de Haroldo. Como nasceu e cresceu essa amizade? Tive duas intermediárias.
A primeira delas foi a saudosa Samira Chalhub, minha colega de estudos, levada precoce e dolorosamente desta vida, mulher extraordinária que espraiava charme e beleza aliados a um humor irônico e inteligente. Foi ela que tomou a dianteira, jamais cedida, na aproximação a Haroldo. Apenas segui sempre na rabeira. Mas eu contava também com outra intermediária não menos extraordinária: minha maravilhosa cozinheira naqueles anos.
Sempre adorei receber as pessoas em minha casa. A cozinheira era parte imprescindível desse cenário. Haroldo era um grande apreciador da boa mesa. Além do menu especial, os convites nunca foram aleatórios. Eram movidos a solidariedade acadêmica. Quando algum professor estrangeiro de nosso círculo passava por São Paulo para palestras ou cursos, o lugar de encontro para socialização era meu apartamento.
Em uma entrevista, o filósofo americano Richard Rorty (1931-2007) declarou que sempre devorou livros e que nunca teve aptidão para as pequenas conversas da vida social. Haroldo também foi um leitor ávido, mas seu talento para o diálogo dotou-o com o poder encantatório de transmutar qualquer conversação em fonte de interesse e entusiasmo.
Aquelas eram noites memoráveis. Começavam com conversas, continuavam em esplêndidas mesas e rapidamente caminhavam para a diversão, a expressão lúdica da nossa jovialidade em pura alegria, natural, sem artifícios.
Samira e eu somos da geração da tropicália, da antropofagia convertida em cortante alegria e riso. Depois da bebida e da comida, não tinha erro, dançávamos. Ao som de "Festa no interior" ou "Existirmos: a que será que se destina?", nós, duas mulheres, formávamos um par que faria inveja à magnífica plasticidade das personagens femininas que dançam juntas nos filmes "Frida" e "O Conformista".
Sempre sentado em uma confortável poltrona, com olhar atento, Haroldo assistia a nossas performances. A música e a dança são contagiantes. Repetidas vezes em cada noite, repetidas noites, o chamávamos para dançar. "Venha Haroldo, venha deixar seu corpo ficar odara".
Conseguir fazê-lo compartilhar esses momentos, tirá-lo da posição de expectador foi se tornando uma conquista almejada. Até que um dia, não sabemos por quais conjunções de astros, Haroldo se levantou e dançou. Entrou no círculo odara. O fato, também não sabemos por que, nunca mais se repetiu.
Conforme o tempo e a vida vão passando, o que nos resta de mais precioso senão a memória dos afetos compartilhados?


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