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CRÍTICA
Maquinaria bem azeitada
A ficção policial, de Allan Poe à Máfia
RESUMO
Nascida pelas mãos de Edgar Allan Poe nos EUA do séc. 19, a história de
detetive fecundou a literatura do séc. 20. Apesar das poucas variações nos
elementos narrativos e das tramas por vezes convencionais, o gênero conquistou a
crítica, cativou o público e se tornou um instrumento de análise social.
JÚLIO PIMENTEL PINTO
QUEM MATOU ODETE ROITMAN? E Marie Rogêt ou Roger Ackroyd? Quem cometeu os crimes da rua Morgue? Vítimas, assassinos e investigadores mudam de nome, mas há quase
170 anos lemos histórias policiais com voracidade. Acompanhamos a investigação,
tentamos descobrir a verdade antes do detetive, nos surpreendemos com o
desfecho.
Tudo começou em 1841, quando Edgar Allan Poe publicou "Os Assassinatos da Rua
Morgue" numa revista de Filadélfia (EUA). A trama partia de um crime horroroso e
apresentava Auguste Dupin, detetive amador de impressionante capacidade
analítica e meio desconectado do mundo. O sucesso foi instantâneo, a revista
multiplicou por sete o número de assinantes e, nos anos seguintes, ainda
publicou outras duas aventuras de Dupin: "O Mistério de Marie Rogêt" e "A Carta
Roubada". Nascia um gênero literário.
O historiador italiano Carlo Ginzburg propôs, 30 anos atrás, uma explicação
sobre o aparecimento dessas histórias de mistério: elas revelariam a mudança na
concepção de conhecimento por que o Ocidente passava no final do século 19. O
novo modelo se manifestava simultaneamente em vários campos: a crítica de arte
buscava pormenores dos quadros, a psicanálise explorava pequenos gestos
inconscientes, a polícia (real ou fictícia) caçava indícios quase
imperceptíveis.
Todos acreditavam que as pistas, encontradas por meio de um "método indiciário"
e submetidas à análise racional, permitiriam elucidar mistérios. Ginzburg usou,
como exemplo, um conto de Arthur Conan Doyle [1859-1930], o criador de Sherlock
Holmes. Conan Doyle era médico. Seu famoso personagem foi inspirado em um antigo
professor, dr. Joseph Bell, conhecido pela atenção aos detalhes e pelos
diagnósticos certeiros. A medicina do século 19 trilhava o caminho que levava
das pistas à razão e impulsionava o novo método.
Sherlock Holmes é referência central para quem busca o detetive analítico
inspirado em Dupin. "O Signo dos Quatro" [Zahar, trad. Maria Luiza X. de A.
Borges, 200 págs., R$ 36], sua segunda aventura, é de 1890 e acaba de ser
republicada no Brasil. É o sétimo volume da ótima edição comentada de Leslie
Klinger.
Holmes está no auge, nada nele é moderado. Logo no início, explica ao dr.
Watson, assistente e narrador, por que não larga a cocaína: seu cérebro precisa
de atividade ininterrupta e acelerada, a falta de desafios intelectuais o faz
recorrer a estímulos químicos. No mesmo capítulo, Conan Doyle repete a
estratégia que empregara em "Um Estudo em Vermelho", a primeira história de
Sherlock (1887): caracterizar o detetive, ainda não muito conhecido (os contos
que o popularizaram só apareceram a partir de 1891), em função do método
indiciário.
A trama de "O Signo dos Quatro" ultrapassa, porém, a questão metodológica e
revela dilemas da colonização inglesa na Índia, o exasperante anseio de riqueza
rápida que movia os dominadores e sua complexa relação com os indianos. Holmes
aventura-se pelas águas do Tâmisa e recorre a seu imenso repertório de
informações. Homem diferente dos demais, não se espanta com a rocambolesca
intriga que envolve dardos envenenados e um indefectível baú de tesouro; para
ele, não há acaso, basta montar o quebra-cabeça.
Do século 19 para cá, a ficção não abandonou mais as histórias de investigação.
Basta ligar a televisão para ver o sucesso do modelo, presente em novelas e
séries de TV, impregnado de novidades tecnológicas, como em "CSI", ou marcado
pela agudeza na observação, como em "Monk". O mesmo dr. Bell que inspirou Holmes
gerou outro famoso protagonista de seriado: dr. House.
Livrarias e bancas de jornais também oferecem todo tipo de narrativa policial:
repetições exaustivas de uma fórmula, que muitas vezes resultam em livros banais
e enfadonhos -para o escritor argentino Ricardo Piglia, eles correspondem a mais
de 90% da produção do gênero. Elas podem, porém, mostrar o engenho de alguns
ficcionistas que, sem jamais abandonar seu sistema narrativo e com pouquíssimas
variações nas histórias, cativam a atenção do leitor e, se não chegam a produzir
grandes obras, tampouco podem ser jogados na vala comum da ficção barata. Os
melhores exemplos são a britânica Agatha Christie [1890-1976] e o belga Georges
Simenon [1903-89].
Christie é a maior vendedora de livros de todos os tempos e pelo menos duas
obras suas são marcantes: "O Assassinato de Roger Ackroyd" (1926) e "E Não
Sobrou Nenhum" (1939). Simenon escreveu quase 200 contos e o mesmo tanto de
romances -75 deles têm o comissário Jules Maigret como protagonista.
"Maigret e o fantasma" [L&PM, trad. Renée Eve Levié, 160 págs., R$ 15],
publicado em 1964, só agora foi lançado no Brasil. A história, simples, envolve
elementos variados: atentado contra um policial, cárcere privado, falsificação
de obras de arte. O destaque é o próprio Maigret, personagem que surgira em 1931
e, 33 anos depois, estava obviamente consolidado.
O ar cansado sugere burocratização de seus atos, mas a contínua dedicação prova
o contrário. Maigret busca pistas e raciocina, como seus antepassados Dupin e
Holmes, mas, ao contrário deles, pertence à polícia oficial e é homem da rua,
habituado a tocaias, capaz de se relacionar com subordinados e com o público,
apreciador da conversa alheia. O livro não traz surpresas nem decepciona:
oferece a maquinaria bem azeitada da ficção policial. Numa época de valorização
da originalidade, a repetição ligeiramente variada faz bastante sentido.
O mesmo acontece com "Na Linha de Frente" [Companhia das Letras, trad. Julia
Romeu, 264 págs., R$ 39,50], de 1989. O autor é o norte-americano Lawrence
Block. Escritor profícuo, Block faz livros incrivelmente iguais que, por
incrível que pareça, agradam mesmo a leitores pouco tolerantes à repetição.
Nesse sentido, é herdeiro de Christie e Simenon.
Mas suas tramas investem em outra dimensão do policial: a da ação. O detetive
que protagoniza "Na Linha de Frente" é o ex-policial Matthew Scudder, que tem
uma longa história de alcoolismo e brigas. Vive às voltas com bandidos e
reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Seus percursos por bares e ambientes sórdidos
apontam para outra matriz do gênero, criada por Dashiell Hammett na década de
1920, nos EUA: o "hard boiled", o romance de alta fervura, em que os detetives
saem de seus escritórios e imergem na vida marginal, no mundo supostamente real
do crime. Block assume essa vertente e compõe a crônica da sociedade
contemporânea e seus problemas sociais. Não à toa, "Na Linha de Frente" é
apinhado de mendigos e diagnostica o submundo de Nova York.
No universo do policial, porém, ninguém expôs os desvãos políticos e sociais
melhor do que o siciliano Leonardo Sciascia, autor de "O Dia da Coruja"
[Alfaguara, trad. Eliana Aguiar, 136 págs., R$ 31,90], que acaba de ser
relançado no Brasil.
A edição original, de 1961, ofereceu um novo tipo de policial: o investigador
segue as pistas, descobre a verdade, mas sabe de antemão que ela não será
revelada, nem ninguém será punido. Para Italo Calvino, tratava-se do "policial
não policial, demonstração da impossibilidade do gênero na Sicília".
Sciascia, na verdade, recorria ao gênero para denunciar a Máfia. Numa época em
que a organização criminosa não era nomeada e sua existência, embora quase
centenária, normalmente negada, ele percebeu que a ficção de mistério podia
expor o contexto criminoso real. A história de "O Dia da Coruja" aponta para o
poder e a infiltração da Máfia na igreja e no Estado, para a dificuldade de
punir seus membros.
A amargura do capitão Bellodi, investigador da trama, mostra o desconforto de um
homem correto diante da "justiça traída", do "silêncio dos honestos e
desonestos". O engenho e a precisão narrativa fazem do livro uma pequena obra-
prima, impedem que ele se torne um panfleto e mostram a mais impressionante
variação por que a ficção policial passou.
Alguns dos primeiros críticos do gênero -Edmund Wilson, por exemplo- afirmaram
que as histórias policiais prestavam-se apenas ao escapismo e ao desejo de
assegurar a ordem burguesa. Em vários casos, de fato foi assim. Um olhar mais
amplo sobre sua trajetória de quase dois séculos, no entanto, mostra que o
policial pode assumir sentido oposto: revelar dilemas e abismos.
Os detetives, de Dupin aos dias de hoje, continuam, afinal, a procurar a
verdade. Nem tudo, porém, é repetição, e a busca pode confirmar o que Pilatos
disse e Noel Rosa repetiu: a verdade existe, mas não é una, e muitas vezes mora
-ou é jogada- num poço.
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