São Paulo, domingo, 18 de julho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

REPORTAGEM

Até que a criogenização nos separe

A imortalidade como traição

RESUMO
A técnica de congelamento de corpos em nitrogênio líquido, na esperança de futura ressurreição, conhecida como "criogenização", ganha adeptos nos EUA, sem mostrar resultados científicos sérios, e traz dilemas para casais, que se dividem entre o sonho da imortalidade e a realidade de um projeto amoroso comum.

KERRY HOWLEY
tradução JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

PEGGY JACKSON, 54, FICA MUITO incomodada com certas maneiras de falar sobre a morte. Não gosta do tom militar de expressões como "ela perdeu a batalha contra o câncer". Também fica insatisfeita quando o médico diz ao paciente "esgotamos todas as possibilidades" ou "não podemos fazer mais nada". Peggy é assistente social em Arlington, na Virgínia (EUA): trabalha num "hospice", espécie de asilo hospitalar que cuida dos últimos momentos de doentes terminais. Ela não gosta dessas frases, mas tolera. A única expressão relativa à morte que Peggy não admite em sua casa é "preservação criogênica", termo que indica a preservação de seres humanos em baixíssima temperatura, na esperança de futura ressurreição. E essa é a escolha funerária de seu marido, o que gera algumas complicações para a família.
"Trabalho o tempo todo com gente que está morrendo", diz ela. "Vejo as pessoas morrendo toda hora. E o que existe de tão bom em mim, que me faça querer viver para sempre?"
A origem da altercação entre Peggy e seu marido, Robin Hanson, 50, é vaga, uma vez que nenhum dos dois consegue se lembrar quando ele manifestou, pela primeira vez, a intenção de que seu cérebro seja removido cirurgicamente de seu cadáver ainda fresco, para ser preservado em nitrogênio líquido. Teria sido há décadas, antes de se casarem e antes do nascimento de seus dois filhos, hoje adolescentes. Robin, professor de economia na Universidade George Mason, também na Virgínia, admite que devia ter previsto pelo menos algum desconforto por parte de sua então namorada.
Robin é o tipo do "nerd" empolgado com o futuro, o que é evidente em seu currículo, que lista artigos publicados como "Crescimento Econômico Considerando a Inteligência Mecânica" (sobre como robôs permitirão taxas de crescimento elevadas), "Queimar os Comuns Cósmicos - Estratégias Evolucionárias de Colonização Interestelar" (sobre o comportamento que podemos esperar de extraterrestres) ou "Tendência-Difusão na Mecânica Quântica de Palavras Deturpadas" (complicado demais). Seu entusiasmo fica evidente na maneira como fala dessas ideias, gesticulando, rindo cada vez que menciona a distância entre suas teorias e as do "mainstream". Se está sentado numa cadeira, ela se remexe com ele.
"Na verdade, eu só sou tremendamente curioso", Robin me disse em janeiro, em entrevista pelo Skype. "A criogenização não é só viver um pouquinho mais. É também viver um pouco no futuro." A reação inicial de Peggy a essa ambição, enraizada menos no ceticismo científico do que nas convicções dela sobre a busca da imortalidade, quase não mudou nos últimos 20 e poucos anos. Robin diz acreditar que existe uma pequena chance de que seu cérebro venha a ressuscitar, que o tempo passado na criopreservação será uma breve pausa no curso de sua vida. Peggy vê nessa busca um ato de egoísmo cósmico. Dentro de uma subcultura americana específica, o casal não deixa de ser praticamente um clichê.

MULHER HOSTIL Entre os adeptos da criogenização, a reação de Peggy pode ser considerada um exemplo do "fenômeno da mulher hostil", discutido em artigo escrito em 2008 de Aschwin de Wolf, Chana de Wolf e Mike Federowicz. "Desde o seu início, em 1964", escrevem eles, "é sabido que a criogenização produz, com frequência intensa, hostilidade em cônjuges que não são criogenistas." A oposição de parceiros, disse-me Aschwin no ano passado, é algo que "todo mundo" envolvido em criogenização conhece bem, mas que ele e Chana, sua mulher, acham difícil de entender.
Para quem acredita que a preservação em baixa temperatura é uma oportunidade legítima de prolongar a vida, a obstrução pode parecer tão cruel quanto negar atendimento médico. Mesmo que você não queira se juntar ao seu cônjuge armazenado, perguntam os seguidores, o que tem a perder ao respeitar os desejos de um ser humano quanto ao tratamento que será dado a seus restos mortais? Forçados a desistir, eventuais criogenistas "encaram a morte certa", diz o artigo.
Prenúncios do problema podem ser encontrados nos recessos mais profundos da história da criogenização. Robert Ettinger é o pai da criogenização, inaugurada com o livro "A Perspectiva da Imortalidade", de 1964. "Não se trata de um hobby, nem de um assunto para animar conversas", ele escreveu em 1968, "é a luta pela sobrevivência. Se o custo de um carro novo interferir no seu projeto, dirija um carro usado. Se sua mulher não cooperar, divorcie-se."
Hoje, com quase 200 corpos preservados nos dois mais importantes centros criogênicos, o Instituto de Criogenização de Michigan e a Alcor, no Arizona, e com 2 mil pessoas à espera de armazenamento depois da "morte legal", os criogenistas criaram redes de apoio para lidar com os conflitos matrimoniais. Uma das questões frequentes na lista de discussão Cryonet, criada para debater o assunto, é a oposição das mulheres. (A proporção de homens para mulheres entre os criogenistas vivos é de cerca de três para um.)
"De modo geral, ela acha a ideia doentia, deturpada e assustadora", escreveu um homem que acaba de ter contato com o fenômeno da mulher hostil. "Ela é mais inteligente do que eu, insaciavelmente curiosa e amorosamente dedicada a mim e à nossa filha de dois anos. Então por que está reagindo assim?"

PRESERVAR DADOS O tom de magoada confusão entre os partidários provém, em parte, da crença de que a criogenização é uma tentativa inofensiva de preservar dados, não muito diferente de guardar uma caixa de fotos. Muitos dos homens brancos sem religião, predominantes nas fileiras de criogenistas, são engenheiros de software, vocação que deposita grande fé na primazia da informação.
"Se você tem um disco rígido num computador cheio de informações importantes, vai procurar salvá-lo", diz J.S., criogenista e engenheiro de computação que mora em Oregon (EUA). Ele não permite que o seu nome completo seja divulgado, pois teme que a mulher peça o divórcio. "Você não atiraria o disco rígido no fogo. Para mim, está claro que a memória fica armazenada na forma de arranjos moleculares. Só quero preservar as memórias."
Quando Peggy e Robin ainda eram dois californianos sem dinheiro e tremendo de frio em Chicago, a escola de direito da universidade costumava exibir filmes antigos por US$ 1. Eles iam assistir a um filme com Cary Grant e voltavam para os dormitórios, onde ele a ensinou a jogar gamão; os dois costumavam passar noites geladas jogando. "O Robin é muito romântico", diz Peggy. "Ele deixava recados na caixa de correio do meu dormitório o tempo todo, poeminhas e coisinhas, fotos de que gostava. Ainda tenho isso tudo."
Peggy evoca esses recados porque, em seu local de trabalho, filhos leram para a mãe doente cartas de amor recém-localizadas, escritas pelo pai antes da Segunda Guerra. Durante a minha visita ao centro de doentes terminais, no começo deste ano, famílias reuniam-se nos quartos e na grande área comum, com uma TV ligada e caixas de brinquedos postas de lado para dar lugar a uma árvore de Natal.
Animais de estimação são permitidos; bebida também. Os hóspedes-pacientes podem conversar com assistentes sociais como Peggy, mas provavelmente por pouco tempo, já que a média de permanência ali é de sete dias.

ACEITAÇÃO Peggy não se considera religiosa e "definitivamente não é cristã", embora não tenha a mesma certeza de Robin de que nada sobrevive quando o corpo morre. Seu trabalho a levou a focar suas atenções nos últimos dias da vida, em parte estimulando os pacientes a parar de pensar só na medicina. As famílias vêm do hospital para o "hospice" obcecadas por números: contagem de glóbulos vermelhos, pressão sanguínea, batimentos cardíacos. "Olhe para ele", aconselha. "Parece confortado? Mas, é preciso muito esforço para fazer as pessoas deixarem de lado aquelas coisas de hospital."
Guia turística do processo de morte, Peggy conta às famílias o que elas verão ali e o que fazer para reduzir ao máximo o desconforto. Os pés e as mãos vão ficar frios. Os sentidos vão se apagando aos poucos, mas a audição continua aguçada até o final; não é aconselhável contar segredos dentro do campo de audição de um paciente aparentemente inconsciente. Os músculos necessários para engolir vão se enfraquecer, e o som resultante vai parecer um chocalho.
Para uma transição serena, estimula-se a família a assinar um formulário que pede para "não ressuscitar" o familiar. É muito raro alguém não assinar; não fazê-lo é violar o ensinamento filosófico do lugar, orientado, sobretudo, para a aceitação. "Os paramédicos entram e dão socos no peito", diz Peggy. "Quebram ossos, causam dor, é um trauma sério. Isso sempre me dá a sensação de fracasso. Eu não consegui fazer contato com uma família dessas, coitada."

PACIENTES Os EUA não são um lugar fácil para levantar a bandeira da aceitação; o mais provável é que ela seja chamada de "desistência", e evidentemente não existe expressão mais pura dessa atitude do que a busca da criogenização. Corpos e cabeças armazenados em tanques de aço, esperando o momento em que a medicina avance até o ponto em que os tecidos possam ser reparados, os corpos revividos e cérebros reimplantados em novos corpos, decididamente não são chamados de "restos mortais" ou "cadáveres", mas de "pacientes".
Um coração parar de bater não é considerado um motivo para interromper a luta pela vida. Por isso, Peggy gasta energia psíquica tentando ignorar as providências criogênicas de Robin. Contas bancárias individuais permitem que ela não fique sabendo quanto ele gasta em taxas anuais (por volta de US$ 400), e assim os dois conseguem evitar o assunto. Quando ele morrer ("porque ele vai morrer", acrescenta Peggy), outra pessoa vai se encarregar de entrar em contato com a Alcor e explicar os desejos de Robin aos funcionários do hospital. "O meu marido já disse, inúmeras vezes, 'escolha a vida, a qualquer custo'," diz Peggy. "Mas eu vi gente sofrendo. Não vale a pena."
Pouco depois de Peggy e Robin se conhecerem, um resolveu ler as obras literárias favoritas do outro. Peggy pediu a Robin que lesse "Os Irmãos Karamázov", de Dostoievski, e ele pediu que ela lesse "O Senhor dos Anéis", de J.R.R. Tolkien. Ela detestou. "Perguntei por que ele tinha gostado, e ele disse: 'porque tem muitos detalhes. O cara inventou um mundo próprio.' Ele perguntou por que eu tinha detestado e eu respondi: 'Porque tem detalhes demais. Não sobra espaço para o leitor imaginar sua própria interpretação'." Menos propenso a contar histórias, Robin descreve mais sucintamente aqueles primeiros dias. "Havia", diz ele, não sem ternura, "uma convergência de personalidades".

FUTARQUIA Economista interessado em instituições políticas, Robin formulou o conceito de "futarquia", forma de governo em que mercados financeiros de futuros podem ser usados para determinar a viabilidade de diversas políticas. Ele gostaria de viver numa "futarquia". Uma preservação criogênica eficiente aumentará suas chances de ver isso.
Robin fala sobre o que significa ser o tipo de pessoa disposta a fazer o que for preciso para sobreviver. "Nossos ancestrais atravessaram oceanos, atravessaram o continente", diz ele. "Muita gente, a maioria, não fez esse tipo de coisa. Mas eu me considero o tipo de pessoa disposta a passar por uma considerável mudança de estilo de vida, cultura e contexto, se a questão for isso ou o extermínio."
O conhecimento de Robin abrange a economia do sistema de saúde, campo em que enormes quantias são gastas em procedimentos experimentais, com chances ínfimas de prolongamento da vida. Como muitos criogenistas, ele vê a preservação corporal como um atendimento médico experimental de fim de vida, e é no contexto médico que costuma apresentar a questão da criogenização em suas aulas de economia da saúde na Universidade George Mason.
Seus alunos raramente aceitam esse argumento. "Passamos a maior parte do semestre falando em quanto as pessoas são obcecadas com qualquer pequena chance de viver mais", disse Robin. "Quando chegamos à criogenização, dizem: 'Bom, quem precisa viver mais? Qual o sentido da vida, afinal? Por que não conseguimos resolver a fome mundial?'."
Em outras palavras, enquanto sua mulher diz que a tecnologia médica põe uma infeliz camisa de força na forma como morremos, Robin quer invocar a proteção da ciência médica na tentativa de evitar inteiramente a morte. Mas, nessa questão, ele não tem esperança de ser ouvido e, assim como acontece com a maioria das atitudes sociais que contradizem suas intuições, ele tem uma teoria para explicar.

TRAIÇÃO E ABANDONO "A criogenização", diz Robin, "tem o problema de sugerir que você está comprando um bilhete só de ida para uma terra estranha." No contexto americano, gastar uma fortuna familiar na luta contra o câncer não é considerado um ato de egoísmo. Mas planejar ser lançado ao futuro -um futuro que sua família não está interessada em ver, ou acredita que jamais veremos- quer dizer planejar uma vida em que os seus relacionamentos em curso têm pouco significado. Quem busca a imortalidade está tramando um gesto de separação, um gesto, como diz Robin, "de traição e abandono".
Pode-se ou não identificar subconscientemente como traição a tentativa de derrotar a morte, mas a verdade é que, na literatura ocidental, paira sobre a busca de imortalidade um ar de ameaça. Basta pensar em Gilgamesh [personagem de um texto épico da Antiguidade] ou em Voldemort [vilão das histórias do personagem Harry Potter]. "Existem muitos velhos estereótipos culturais sobre os motivos e o caráter das pessoas que buscam o prolongamento da vida", diz James Hughes, diretor-executivo do Instituto de Ética e Tecnologias Emergentes, organização sem fins lucrativos que namora o prolongamento da vida. Hughes escolheu não participar da criogenização, que considera um experimento válido. "Embora seja uma aposta modesta para uma gratificação potencialmente imensa", diz ele, "eu valorizo a relação com a minha mulher."

COLABORAÇÃO Se a preservação criogênica aponta, de fato, para a traição, ela exige muita colaboração daqueles que seriam traídos. Na ala de cuidados com pacientes da Alcor, repleta de tanques de aço de três metros de altura, cheios de corpos humanos e ligados a monitores, um homem é encarregado de manter o nível do nitrogênio líquido. Outro limpa o chão.
Os encarregados da ala de cuidados são apenas os últimos numa longa cadeia empenhada em prestar assistência aos membros "inanimados".
Alguém tem de realizar a perfusão, por exemplo, processo que substitui o sangue com uma solução anticongelante, que endurece feito vidro, em vez de congelar como água. Alguém tem de acompanhar o corpo, do local da morte às instalações criogênicas. Alguém tem de cuidar dos horários de voo, dos médicos-legistas locais e da bizantina burocracia hospitalar, geralmente inimiga de quem marcha hospital adentro e leva embora os mortos recentes.
É muito mais provável que isso tudo dê certo se o fiel depositário dos restos mortais estiver disposto a colaborar. "Se você não conta para a sua mulher que está envolvido com criogenização, você não a ama de fato", diz S.B., criogenista de Indianápolis. Ele diz que o seu casamento está afetado e que seus dois relacionamentos anteriores fracassaram por causa da criogenização. "E quando eu morrer, quero que minha mulher chame a Alcor."
Não escapa aos membros da comunidade criogênica, sempre vigorosamente afirmativos da vida, que a sua prática, volta e meia considerada território de solitários desajustados ou ferrenhos individualistas, depende de grande fé na competente benevolência de outras pessoas.
Da mesma forma, Robin não é cego a ponto de não enxergar quanto depende de sua tribo. Apesar da ausência de limites nítidos e resultados previsíveis, o casamento é uma das poucas instituições que ele parece não ter nenhum interesse em reformar. Peggy descreve o conflito deles como algo semelhante a uma profunda diferença religiosa, transponível por meio de algumas convicções de base comuns a ambos. "O Robin e eu estamos juntos há 28 anos", diz Peggy. "Sempre adoramos ficar juntos. Ele é um pai excelente. Dedica muito tempo e energia à vida familiar. E isso precisa ser levado em conta."
Robin e Peggy calam sobre como, exatamente, a morte os separará, mas, no começo deste ano, um pedaço de conversa tocou o assunto. Estavam sentados à mesa da cozinha e Peggy contou a Robin sobre uma tradição funerária de que ouvira falar: depois da cremação, a cinza do morto é dividida entre os familiares. Os filhos e a viúva recebem um punhado cada um, para guardar ou dispor dele como bem entenderem.
"Vocês não vão ficar com nenhuma parte de mim", disse Robin. "Eu vou ser congelado."
"Não," disse Peggy. "A sua cabeça vai ser congelada. Eu fico com o resto."

"É sabido que a criogenização produz, com frequência intensa, hostilidade em cônjuges que não são criogenistas"

"Pode-se identificar como traição a tentativa de derrotar a morte, mas, na literatura ocidental, paira sobre a imortalidade um ar de ameaça"



Texto Anterior: Crítica: Maquinaria bem azeitada
Próximo Texto: Ensaio: Sobre a entrevista
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.