São Paulo, domingo, 19 de junho de 2011

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LITERATURA

Capital da ficção

A íntima e estranha Praga

RESUMO
Celebrizada na obra de Kafka, a capital tcheca é cenário de romances de Sérgio Sant'Anna e de Jan Neruda. Articulados em fragmentos e opostos em muitos aspectos, os livros mostram dois tipos de narrador: o turista, que arrasta pela cidade seu arsenal de clichês; e o cronista, que a interpreta a partir de dentro


JÚLIO PIMENTEL PINTO

PRAGA, CIDADE estranha. Praga, cidade familiar.
É quase impossível que o viajante não se renda ao aparente exotismo, à surpresa que a cidade provoca. Impossível não ver, nela, uma fronteira entre Ocidente e Oriente.
Fronteira -como tantas outras, reais ou metafóricas- porosa, permeável; lugar de transição, em que as peculiaridades de cada lado quase se dissolvem, confundem-se. Desorientado, o observador é forçado a buscar um ponto, mínimo que seja, onde fixar seu olhar para compreender os sentidos que a cidade oferece.
E se você não for tcheco, tanto pior: dificilmente compreenderá o ritmo confuso, o idioma quase impenetrável -que esteve a ponto de se extinguir-, a presença subterrânea de outras vozes e culturas que um dia passaram por ali e quiseram ficar.
Escrevendo em alemão, Kafka nos deu uma Praga vertiginosa e candente, nebulosa e complexa, que lhe era simultaneamente estranha e íntima e a que nós, leitores distantes, nos acostumamos.

LABIRINTOS É essa Praga de labirintos e impasses que agora ressurge em dois livros de ficção. Fora o fato de ambos conterem histórias que podem ser lidas separada ou articuladamente, a comparação é quase impossível.
O primeiro é "Malá Strana - Vestígios de Praga" [Record, 2011, trad. Luís Carlos Cabral, 410 págs., R$ 54,90], de Jan Neruda (1834-91). O autor é pouco ou nada conhecido no Brasil. O nome nos faz pensar em outro Neruda: o poeta chileno Pablo --nascido Ricardo Reyes Basoalto--, que, como diz Luís Carlos Cabral, o tradutor, na bonita nota que abre a edição, "se apossou Deus sabe por que do sobrenome de Jan".
Pois o Neruda original escreveu no século 19, em tcheco, nasceu e viveu em Malá Strana, "bairro (ou lado) pequeno" da cidade de Praga, na rua por onde passavam os cortejos que seguiam para o castelo -sim, o mesmo castelo que conhecemos através de Kafka.
O segundo é "O Livro de Praga", [Cia. das Letras, 136 págs., R$ 37,50], de Sérgio Sant'Anna. O autor carioca foi a Praga apoiado pelo projeto "Amores Expressos", que enviou autores brasileiros a diversas cidades do mundo, para que lá passassem um mês e escrevessem histórias de amor ambientadas nos ares que visitaram.
A dessemelhança vai mais longe: "Malá Strana" é um clássico, aquele tipo de obra que, quando lemos (ensinou Italo Calvino), pensamos já conhecer e, quando a relemos, parece que a temos nas mãos pela primeira vez.

OLHAR TRANSITÓRIO "O Livro de Praga" é assumidamente um livro de ocasião, pela própria circunstância de sua escrita -uma estadia provisória na capital tcheca- e pelo olhar transitório do narrador, que, nome trocado, se apresenta aos leitores na persona de um escritor vinculado ao projeto de que o autor participa.
Esse narrador de Sant'Anna mostra Praga pelo olhar do estrangeiro. Desde o início, define sua distância em relação ao local e à cultura em que se viu lançado. A construção das frases, já na primeira história do livro, é seu cartão de visita: muitos advérbios, escolha inadequada de alguns vocábulos, entonação formal, estranhamento, artificialismo, refúgio em visões estereotipadas. Ele é o turista, o visitante de uma cidade que se define pelos produtos artísticos acumulados ao longo dos séculos -música, arquitetura, artes plásticas e, obviamente, literatura-, e não pela vida que supostamente flui pelas ruas.
As personagens que o narrador encontra revelam traços da mesma distância, sempre reiterada. Mesmo o sexo, presente nas sete histórias que compõem o livro, ganha contornos cada vez mais inumanos. Da pianista à suicida, da mulher tatuada à policial, da estátua que representa uma santa à sombria boneca de pano, prevalece a falsidade, o artificialismo. Prevalece o olhar de uma ficção do final do século 20, início do 21, em que a percepção de um mundo fluido e desenraizado se traduziu tantas vezes na tópica do deslocamento, da perda de referências fixas e, não raro, no apelo enfático ao clichê como estratégia crítica.
O diálogo interno à literatura -privilegiadamente com Kafka e, de forma mais explícita, no quarto e no quinto contos, "A Boneca" e "O Texto Tatuado-" e a autorreferência são eixos igualmente destacados de "O Livro de Praga".
Os dois recursos enfatizam a figura do narrador como turista. Viajante que é, tende a guiar-se menos pelo que descobre e mais pelo que traz, que acumulou antes da viagem: seu repertório livresco, a soma de seus valores e vontades prévias. Por isso, sua perspectiva sugere algo de arbitrário; ele atribui, de fora, significados estranhos ao que vê; sentidos quase sempre muito distintos e distantes da experiência de viver no lugar.

FORA E DENTRO Ao olhar de fora que Sant'Anna propõe, contrapõe-se radicalmente o olhar de dentro (e para dentro) de Praga, oferecido por Neruda.
Inevitável que fosse assim, tratando-se de Neruda e do tempo em que viveu. As histórias reunidas no livro foram escritas entre 1867 e 1877. O autor é o mais destacado de uma geração que se empenhava em recuperar o uso do idioma local e reagia à germanização de que os territórios tchecos eram vítimas desde o século 17, quando o poder dos Habsburgo transferiu a capital do império para Viena e condenou Praga, pela imposição do alemão, a um relativo silêncio, que durou cerca de 200 anos.
O ótimo prefácio de Ivan Klíma, que acompanha a edição brasileira, historiza o perigoso esforço dos tchecos para escrever na própria língua e o papel redentor que Neruda e seus contemporâneos tiveram na preservação e difusão de um idioma até então quase desconhecido pelos próprios habitantes da Boêmia.
Mais do que a disposição de identificar a pátria no idioma tcheco, Neruda propõe uma ação libertadora frente ao domínio cultural alemão. Identifica, com agudeza, que a percepção possível da singularidade de Praga está na vida cotidiana de seus moradores.
O subtítulo da edição brasileira de "Malá Strana" já explicita a atenção às pequenas coisas: "Vestígios de Praga" -inteligente opção da ótima tradução de Luís Carlos Cabral ao literal "Contos de Praga". Nos vestígios -detalhes que restam-, estão as marcas peculiares da cidade.

DETALHES Neruda percebe a relação profunda do miúdo com o grande, do íntimo com o coletivo, e recolhe casos aparentemente limitados, encerrados nas histórias pessoais de quem vive em Malá Strana, o bairro, para ampliar sua dimensão. Nos detalhes, já se disse, está o universo -e o autor tcheco canta o bairro para encontrar seu lugar no mundo.

RITUAIS O narrador precisa, por isso, enxergar os discretos rituais que distinguem seus vizinhos de outras gentes e usar a lente da escrita para anunciar a seus próprios personagens -reais ou fictícios- que eles compõem um grupo unido pelo passado, pelas tradições e pela história imiscuída no dia a dia. Daí seu esforço de cronista (por definição um homem voltado ao próprio tempo); daí sua opção -talvez mais ideológica do que estilística- pela representação realista; daí seu papel decisivo na conformação de uma comunidade imaginada, capaz de mostrar aos tchecos seus vínculos recíprocos.
Praga, cidade íntima e estranha. Pouco íntima e bastante estranha para o narrador de Sant'Anna; muito íntima e igualmente estranha para quem circula nas histórias de Neruda e, mesmo pertencendo àquele universo, se encontra dele afastado.
"O Livro de Praga" e "Malá Strana" são livros opostos, de diversa espessura e compromissos desiguais. O que os diferencia, porém, pode aproximá-los: a inserção radical dos livros de Neruda e Sant'Anna no tempo em que vivem, com sua eleição de temas e de precursores, com a necessidade que ambos parecem sentir de dialogar diretamente com seus contemporâneos e que justifica as opções estéticas do brasileiro e a dimensão simultaneamente estética e política do livro tcheco.
E como reage o atual leitor brasileiro frente às duas obras? Além de aproveitar a ocasião para visitar literariamente uma das cidades mais belas do mundo e de conhecer um autor decisivo da ficção do século 19, provavelmente confirme a impressão anterior, de origem kafkiana ou não, acerca dos infinitos mistérios e da estranha familiaridade que Praga provoca.

Viajante que é, o narrador de Sant'Anna tende a guiar-se menos pelo que descobre e mais pelo que traz, que acumulou antes da viagem

Neruda percebe a relação profunda do íntimo com o coletivo e recolhe casos aparentemente limitados para ampliar sua dimensão

O que os diferencia, porém, pode aproximá-los: a inserção radical dos livros de Neruda e Sant'Anna no tempo em que vivem

Kafka nos deu uma Praga vertiginosa e candente, nebulosa e complexa; é essa cidade de labirintos e impasses que agora ressurge em dois livros.


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