São Paulo, domingo, 19 de junho de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Pro dia nascer feliz

MARCELO MIRISOLA

AQUI NO CENTRO do Rio, não fico sozinho, a cidade me faz companhia. Como se eu fosse uma criança, e a solidão me desse as mãos para atravessar ruas, entrar em botecos e encetar pequenas cosmogonias. Sou um bêbado discreto e só um pouco ruminante. Um vulto triste e complacente que jamais estragaria a festa das almas trôpegas que ainda pensam que estão vivas. Parece uma ninharia, mas é muito se eu for comparar a São Paulo: cidade que nunca me ofereceu nada diferente de expurgo, os melhores amigos, exílio e uma solidão que não precisa de ninguém para existir. São Paulo me cospe.
No Rio, o movimento é exatamente o contrário. A paisagem, de braços dados com a solidão, além de me tragar, também me acompanha -embora meu amigo Miguel do Rosário tenha argumentos geográficos e políticos (agora não me lembro quais...) que provam que o centro do Rio não existe.
Apesar de todas as evidências forjadas pela secretaria de Turismo, o "Rio Antigo" não está preso numa fotografia amarelada. Isso é mentira pra decorar boteco de paulista. O Rio não é um lugar que tem promissórias a acertar com o tempo. Nem com o passado, nem com as Olimpíadas de 2016. Antiga é a mania de demolir e reformar, de cumprir as obrigações do dia a dia, de abrir franquias e fazer "releituras": antigo é o hábito de registrar o tempo em fotografias.
O mais grave é não ouvir o lamento das pedras. Um erro. O fato de os séculos terem passado não impede que as pedras do beco dos Barbeiros continuem gritando. São as mais sofridas e indiscretas da cidade. Antigo é não transcender.
Os burocratas da Riotur não deviam ignorar os aflitos que buscam indultos na igreja do Carmo, vizinha do beco. A bocarra aberta da igreja continua -apesar de o purgatório não mais existir- cumprindo sua função de engolir almas. Nem sei se é bom negócio. Mas sei que o tempo pisado, no Rio, é bem público e privado, assim como o desamparo e os pecados do mundo, bens que não prescrevem e não têm nome.
Botecos são botecos, conventos não são jaqueiras e igrejas não são espaços culturais da Oi. Tem certas coisas que demandam apenas rumores para que existam e sejam compreendidas: os passos de um homem na rua do Ouvidor, que apressam o ritmo do sujeito que vem à frente; a aflição dos dois a caminho do trabalho, um pouco antes de olharem para a mesma mulher, do outro lado da calçada. Aparentemente uma cena banal.
Mas esse rumor tem o mesmo efeito do silêncio que congela as ruas e os séculos imediatamente depois que os homens apressados dobram à esquerda na direção da Sete de Setembro. Claro que fantasmas existem. Eu os vejo, eles me veem -vivos e mortos a caminho do eterno pasto. As almas do Telles juram que estou vivo. O gato preto que desaparece na próxima esquina e o arrepio que sobe pela espinha são lições de indiferença que cumprem séculos e séculos. Eu sei! Na manhã de setembro de 1711, uma espessa neblina baixou sobre a baía de Guanabara -lembram?- e facilitou a invasão de René Duguay-Trouin, o francês filho da puta que sequestrou a cidade e impôs o terror à população. Na mesma manhã de setembro, Vanusa perderia Antonio Marcos para Débora Duarte. A dor permanece nas manhãs de setembro. Em alguns casos, a redundância também. Quem é que precisa de provas?
Os fantasmas da rua do Senado espalharam boatos de que o tempo não passa. Aconteceu anteontem. Depois de comer um sanduíche de bife à milanesa no Massapê, esquina da Gomes Freire com a rua da Relação, resolvi seguir até a Lavradio. De lá, meu plano era simples: pegaria o bagulho na praça Tiradentes e me pirulitaria o mais rápido possível em direção à Cinelândia. Nem bem havia dobrado a esquina, um sujeitinho de paletó de linho branco, cabelo engomado, chapéu panamá e sapato bicolor me pediu fogo. O malandro foi direto ao ponto:
- Veio de lá, parceiro?
Encruzilhada braba. Eu não estava a fim de pagar de otário justo no coração da Lapa, e respondi: - Sim, nascido e criado em São Paulo. Mas estou aqui para resgatar meu coração que ficou espanado no morro do Livramento. E você, malandro? Saiu de um ensaio da "Marie Claire"?
Se eu dissesse que o malandro evaporou, estaria cometendo um ectopleonasmo (não resisti ao trocadilho, perdão). Segui na direção da praça Tiradentes, onde pegaria o bagulho, perto da Estudantina, e, no máximo em oito minutos, a passos largos, chegaria ao meu destino: uma asinha de anjo no Galeto Liceu. Segundo meus cálculos, antes das 20h daria cabo do anjinho na brasa e ainda me sobraria um tempo para conferir a qualidade do bagulho -ou parte dele. As distâncias no Rio são curtas, mas pesam. Ir da Lapa até a praça 15 significa cumprir uma maratona espiritual. Agora, tem uma coisa que independe da circunscrição do susto e que me chama muito a atenção: todos os fantasmas que encontro pelo caminho, todos eles têm sede.
Ontem à noite, enchi a cara na Cinelândia. Joel bate ponto lá. O Barão, que também não sai do Amarelinho, contava que seu cardiologista o havia proibido de beber nas refeições. Para não contrariá-lo, teve uma ideia brilhante: decidiu abolir as refeições. Voilà! O Barão é foda, o rosto de menino atrás da barba branca e os olhinhos que brilham como se fossem um radar em busca de cascas de banana não me enganam. Eu escolhi não facilitar com a monarquia. O ideal, a tática mais indicada, é pedir outra dose e meter o pau no Getúlio. O mesmo vale pro Joel. Recém-chegado do Sergipe, descolou um emprego na redação do "Dom Casmurro". Os dois e mais o Brício -que tem mania de bordejar sobre as mesas- armaram o QG no Amarelinho.
À primeira vista, não fui com a cara do Joel. Ele e Brício não se desgrudam. Tive a impressão que eram "bookmakers", daqueles que trocam segredos de cavalariça. Me enganei. A Víbora, leia-se Joel Silveira, nos contou que está morando numa pensão na rua das Marrecas, ali pertinho. Gamou na faxineira, logo "espichou a braguilha" na direção dela e teve sua recompensa. Sei não. Se é verdade ou mentira, não me interessa: o melhor é que ele batizou a garota de "miss Marrecas". Cafajeste e boa gente, glutão. Dois glutões, ele e o Barão. Só de ouvir o Barão pedir o famoso "talharim al pomodoro" dá vontade de comer a própria gravata. O Brício não, esse é mais de ficar ciscando. Antes de morrer, já cultivava essa mania de bordejar sobre as mesas, um passarinho.
Por que ninguém "comete" bondades? Sim, Barão, foi isso mesmo o que eu disse. Por que apenas arquitetam-se maldades, bolam-se golpes, e crimes são urdidos na calada da noite?
O Barão não se fez de rogado e soltou alguma piada, da qual - sou obrigado a confessar - não me recordo agora, não.
Enchemos literalmente os esqueletos naquela noite e brindamos à miss Marrecas e ao Bussunda, que acabava de chegar à mesa, meio sem jeito. No dia seguinte, acordei no largo de São Francisco da Prainha. Ouvi um batuque vindo na direção da Pedra do Sal misturado com o barulho do mar que arrebentava logo ali nas muradas do cais -o problema é que ambos, o mar e o cais, tinham sido removidos de lá havia pelo menos cem anos. A gente não deve contrariar as ressacas, venham de onde vier. Não sei como, mas consegui ir do largo da Prainha até a Pedra do Sal, cheguei são e salvo na pensão da tia Ciata que me recebeu de braços abertos. Vejam só; da Prainha até a pensão é perto, mas é longe. Sobretudo pruma alma vendida, trôpega e premida como esta que vos escreve e que era mais carne do que qualquer outra coisa depois do porre da noite anterior -e foi assim, com a alma sobre as costas, que subi os degraus escorregadios da Pedra do Sal e cheguei na pensão supracitada.
Os batuques que ouvi no largo da Prainha vinham de uma roda de jongo, da qual tia Ciata era madrinha. Podia estar louco, mas não surdo. "Os negros" - ela me disse: "estão faceiros, mas nem eles e nem Deus sabem, ainda não, que são brasileiros."
Ela estava certa. Naquele 1899, o Cristo ainda não havia fixado residência no alto do Corcovado. Pelo sim, pelo não, resolvi pedir mais uma dose pra garantir guarida. A noite ia ser longa e prometia.
Todavia, o mar era o mesmo, eu lembro, o mar que há cem anos, aterrado e removido de si, rebentava das muradas do largo da Prainha, era o mesmo que ia e vinha e investia suas tempestades contra os meus miolos encharcados de álcool e assombrações. Também me recordo -vagamente- das coordenadas de tia Ciata, ela me disse que uma louca estaria à minha espera no morro do Livramento e que eu deveria entregar o bagulho na quinta-feira, sem falta.
As promessas da noite foram cumpridas. Acordei em Ipanema, mais ou menos entre fevereiro de 1985 e maio de 2011. O dia havia nascido feliz e eu tinha pouco tempo para aproveitá-lo - mas, antes, eu teria que me livrar daquele maldito bagulho de uma vez por todas.


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