São Paulo, domingo, 19 de junho de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Anjo torto

Rio de Janeiro, 1961

CHACAL

Eu já fui um bom menino. Eu já fui angelical. A prova está nesta foto. Retrato falado do que fui um dia. Em priscas eras, lá pelos anos 1950, filho de família carola por parte de mãe, tinha que cumprir o ritual de passagem para algum lugar. E que fosse para o paraíso, onde querubins bailavam ao som do Pink Floyd.
E lá fui eu fazer o serviço militar da Igreja Católica: entrei para o cursilho da igreja São Paulo Apóstolo, em Copacabana. Lá, tinha o padre Zelindo, que vinha com aquelas histórias de céu e inferno. Achava tudo intrigante. Aquela coisa inefável dos dogmas cristãos. Mas queria agradar mesmo minha mãe, Maria Magdalena, aquela santa.
Então me aplicava nos mistérios da santa fé. O que me excitava era a hóstia. Iria enfim experimentar o corpo de Deus. Sim, iria devorá-lo como um canibal. E quem sabe assim, transcenderia a matéria e dançaria o minueto com uma arcanja de cachos dourados. Só isso justificaria a confecção desse uniforme branco, com paletó, gravata e calças curtas. Com terço e missal na mão -e o olhar de quem crê.
Enfim era chegada a hora de a onça beber água-benta. A igreja faiscava seus vitrais. A turma do colégio toda ali, cada um com suas auréolas, suas armaduras e seus véus. O sino tocou, o sacristão incensou a nave com seu turíbulo, o padre ergueu a hóstia, a fila se formou. Íamos enfim, na casa de Deus, conhecer o dono. Devo ter tido uma súbita e infantil ereção. Mas, ao provar a hóstia, decepção. Tinha um gosto de nada. O biscoito de palitinho que se comia na praia era muito melhor. Mas não deixei que a frustração me abatesse. Tinha que agradecer a Deus por tê-lo conhecido e aos meus pais pelo uniforme majestoso.
Fiquei ainda muito tempo impressionado com a fé cristã. Achava que um dia iria enfumaçar as missas com um turíbulo e tocar os sinos, convocando os fiéis para a guerra santa contra o corpo e o sexo. Ou lutando numa cruzada para libertar a Terra Sagrada das mãos dos ímpios. Queria ser Ricardo Coração de Leão e cavalgar contra os mouros e livrar Jerusalém. Assim como meu pai, gaúcho da fronteira, invadindo o Rio na Revolução de 1932, para amarrar seu cavalo no obelisco da avenida Rio Branco. Sim, queria a guerra santa.
Sempre fui chegado a epifanias, às visões que me tirassem desse mundo feito de sexo e de delícias do corpo. Com o tempo, caí do cavalo e descobri, com a ajuda de alguns hereges, que, se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, o corpo não podia ser execrado. Passei a olhar com bons olhos o corpinho das meninas. Era essa a informação que recebia todos os dias através da televisão, do cinema e das revistas.
Um tempo de vedetes: Virgínia Lane, Luz del Fuego. A bossa nova eram os joelhos de Nara Leão. No cinema, Brigitte Bardot. O rock era a trilha. Minhas irmãs mais velhas cultuavam Elvis. E rasgavam o asfalto na garupa das lambretas.
Era um abismo de sentimentos contraditórios. Entre a fé e a festa. Retrato disso foi a Copa de 1962, quando o Brasil foi bicampeão no Chile. Comemorei a vitória na esquina das ruas Leopoldo Miguez e Xavier da Silveira, perto da minha casa. Vibração total. Carros, gritos, fogos, festa. Era domingo de tarde.
Tinha 11 anos. Saí correndo da comemoração profana para a missa das seis para fugir aos baixos instintos, sem saber que, naquele dia, Deus tinha as pernas tortas.
Com o tempo, graças a Deus, me afastei da igreja. Querubim não é papo para mim. Mas nunca deixei de querer me comunicar com o indizível. A carne só é fraca e pouca. Depois, o rock me levou aos beats e hippies. As drogas lisérgicas prometiam abrir as portas da percepção. Estive no limite do humano entendimento. Mais, não fui. Visitei o zen, e ele apontou a poesia. Desci aos subterrâneos e cantei Lúcifer.
Hoje, o menino de dez anos, anjinho da mamãe, que recusou o paraíso e foi ser gauche na vida, ainda sonha encontrar Deus, assoviando com os seus um pagode na ponta da língua.


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