São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2011

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FICÇÃO

Política

A gente morria por ela e se matava por ela




RESUMO
Figura central no Brasil de meados do século 20, o jornalista, escritor, editor e político Carlos Lacerda morreu em 1977, aos 63, cassado pela ditadura militar. Neste texto, o romancista premiado Rodrigo Lacerda narra, pela voz de seu avô, o velório e o enterro do líder e reconstitui seu jeito tão próprio de fazer política e ver o país.


RODRIGO LACERDA
ILUSTRAÇÃO RAFAEL CAMPOS ROCHA

MORRI EXATAMENTE à 1h55 da madrugada de sábado, 21 de maio de 1977. O atestado de óbito, assinado pelo clínico geral, foi o de número 4.260. Criou-se a lenda de que eu teria sido assassinado pela ditadura da época, dentro do próprio hospital. Pura teoria conspiratória. A "causa mortis" estava muito claramente redigida: "Infarte agudo do miocárdio, desidratação aguda por febre, diabetes melito, estado infeccioso agudo e hepatomegalia (fígado aumentado de volume)."
Mas não aparece no atestado uma coisa que talvez seja a principal responsável pela falência do meu organismo, e do meu coração em particular. Todos os sintomas -sopro, hemocultura positiva, hipertrofia do baço, ora febre, ora frieza corporal, e taquicardia com dor- reforçam a tese de que o que me matou mesmo foi a Staphylococcus aureus. Na época, uma bactéria desconhecida. Mas ela existe, e se instala na mucosa interna que reveste o coração, provocando a lista completa de tudo o que senti.
O remédio para mim teria sido uma dose cavalar de penicilina, mas mesmo com isso, na época, minhas chances de sobrevivência seriam de apenas 50%. Esse tipo de bactéria é muito resistente a antibióticos.
LOGO APÓS o óbito ser decretado, meu filho do meio começou a dar a notícia aos parentes e amigos mais próximos. Um sobrinho jornalista, mais meus dois antigos assessores de imprensa, avisaram os jornais e as rádios. Para proteger minha família do assédio, ficou decidido que repórteres e fotógrafos não entrariam no terreno da casa de saúde, e seria recusada toda e qualquer honraria devida a ex- chefes de governo. A Santa Casa de Misericórdia se comprometeu a mandar apenas um carro funerário e um caixão ao hospital.
Foi meu sobrinho jornalista quem anunciou publicamente a decisão de que meu velório não iria para nenhum palácio do Estado, nem para a Câmara de Vereadores ou a Assembléia Legislativa.
Disse isso com uma emoção desafiadora, dando a entender que era uma espécie de protesto. Como não havia capela na clínica, falou-se com o cemitério onde ficava nosso jazigo de família, mas lá, num primeiro momento, todas as capelas estavam ocupadas. Enquanto a imprensa se amontoava na entrada, as pessoas foram chegando. Até o raiar do dia, mais de cem amigos e parentes marcaram presença, a maioria disposta a permanecer até a saída do féretro.
Durante a noite, nenhuma capela vagou no cemitério. O carro da Santa Casa com o meu caixão também não chegou. Diante do afluxo de gente, a solução foi fazer um velório informal, ainda na casa de saúde. Fiquei estendido na cama, de olhos fechados, coberto até o pescoço apenas com um lençol. Meu rosto, após seis dias de doença, estava pálido, emagrecido. Minha mulher, meus filhos, minha nora e meu genro mal saíram do quarto, onde só entravam os amigos de absoluta intimidade -meu querido colecionador de manuscritos e autógrafos, que nunca saía da cama antes de o sono acabar; meu compadre, tão abalado que até passou mal; e mais uns poucos.
Os demais "convidados" se espalharam pelos corredores ou jardins da clínica, ex-colaboradores inclusive. Nas poucas vezes em que foi ao corredor, minha mulher, com o desinteresse da tristeza profunda, mais seu crônico problema de surdez, distribuiu olhares e agradecimentos vazios.

EM ALGUMA ALTURA da madrugada, buscaram lá em casa um terno para me vestir. Azul-marinho, com gravata escura, camisa branca, sapato preto. Meu filho do meio e minha mulher esvaziaram o quarto, encarregando-se da tarefa.
Quando o dia já estava raiando, às 7h da manhã, apareceu o reitor da universidade católica, meu confessor. Ele consolou minha esposa, falou com meus filhos e logo foi embora, prometendo ir ao enterro. Finalmente meu filho mais velho chegou de viagem, chorando muito. Seu carro foi cercado pelos jornalistas no portão, mas ele conseguiu escapar assim que a cancela se ergueu, cantando os pneus pela clínica adentro.
Às 8h ligaram do cemitério, oferecendo a capela 8, que ficava no segundo andar, dando porém a opção de esperarmos até as 9h, quando a capela 1 ficaria vaga. A capela 1 ficava no térreo do pequeno e tristonho prédio, o que tornava possível, se necessária, a ocupação do espaço do hall e da entrada. Minha mulher e meus filhos preferiram esperar. O enterro foi marcado para as 17h. Meio apressado talvez, mas a minha família já vinha de uma noite em claro e não queria prolongar a parte pública do sofrimento.
A kombi branca da Santa Casa, placa VZ-2492, entrou no terreno da clínica só às 9h. A essa altura, a notícia da minha morte já correra a cidade e alguém telefonara avisando meus filhos de que mais de 50 pessoas me aguardavam na capela 1. Graças à Santa Casa, eu estava atrasado para o meu próprio velório. Pelo menos o caixão que mandaram era sólido, de madeira de lei escura, com alças prateadas muito dignas. Como eu já fora vestido, me colocar dentro dele não demorou. Não houve foi tempo para maiores preparos, decorações, arranjos de flores mais rebuscados, essas coisas. Fui eu com meu terno e uma flor na lapela.
Minha mulher, ao sairmos do hospital, foi aconselhada por nossos filhos a passar em casa antes de ir para o cemitério. Ela precisava ter um minuto de paz, tomar um banho, descansar um pouco. Às 9h10 o cortejo saiu da clínica; eu na kombi-rabecão e, atrás de mim, os carros de quem estava no hospital. Em 15 minutos chegamos ao cemitério. A kombi entrou por uma alameda lateral e manobrou, parando de ré junto à porta dos fundos da capela 1. Os serventes descarregaram meu caixão numa mesa também muito sólida. Logo o abriram, para que finalmente se procedesse à decoração, cobrindo-me com rosas vermelhas. Os amigos, jornalistas e curiosos já cercavam a sala.
Meu filhos se perguntaram: "Vai de óculos ou sem óculos?". Realmente, os óculos eram uma marca forte do meu rosto, da minha expressão, da imagem que as pessoas tinham de mim. Por outro lado, sua armação pesada interferia na minha aura plácida de cadáver, evocando a turbulência de tudo o que vivi. Sem conseguir resolver, decidiram que o caixão permaneceria fechado.
Um último detalhe do meu atestado de óbito. Na área reservada às observações adicionais, lia-se: "O finado deixou três filhos maiores. Ignora se fez testamento [sic] e era eleitor."

SEMPRE FUI IMPACIENTE, para tudo. Até nos gestos mais banais eu manifestava uma pressa essencial. Quando chegava em casa, por exemplo, invariavelmente tendo perdido a chave, que todos os dias evaporava do meu bolso, eu desandava a tocar a campainha, sem descanso, com toques curtos e agudos, estourando os tímpanos de quem estava do lado de dentro, até abrirem a porta.
Na política, eu também acreditava que, com a minha estridência, aceleraria o tempo das coisas. O país em que cresci funcionava à base de golpes, contragolpes, revoluções, atentados etc. E o nosso sistema precisava mesmo, nítida e urgentemente, ser aprimorado. Meu avô e meu pai tomaram parte em várias crises, eu também, com muito orgulho, pois era nessas horas que as coisas aconteciam, que o país escapava momentaneamente de suas amarras históricas.
Nas rupturas políticas, o destino da nação passava na porta da nossa casa, para em seguida invadir as nossas vidas. A política que eu conheci desde criança era feita sob o risco de vida. A gente morria por ela e se matava por ela. Pouco importa de que lado você estava, era assim com todo mundo.
Autodestrutiva que fosse para o país, havia uma grandeza nessa política de ideais levados às últimas consequências.
Os africanos animistas acreditam ter seus passos governados também pelos mortos e pelos que ainda não nasceram. Todos os espíritos, mortos, vivos ou ainda por existir, se juntariam no esforço pela promoção da liberdade e da prosperidade. Da fusão entre passado, presente e futuro nasceria uma consciência coletiva e sobrenatural. Espero que esses africanos estejam errados. Não quero mais essa obrigação. Nada é tão difícil quanto tentar entender o destino histórico do meu povo. E as forças do atraso são também muito resistentes à penicilina (vide 37, 50 e 65).

UMA COZINHEIRA, antigamente empregada na casa de um vizinho, ouvira a notícia do meu falecimento pelo rádio. Havia saído de Bangu às 6h da manhã, só para se despedir de mim. Tentando convencer amigos e amigas a virem junto, não encontrou ninguém tão disposto quanto ela a me render as últimas homenagens. Foi a primeira pessoa a chegar ao cemitério.
Também apareceram bem cedo três freiras dominicanas, que acompanhavam minha trajetória desde quando fui paraninfo de uma turma de formandas no colégio Santa Rosa de Lima. A cozinheira e as três irmãs se conheceram ali mesmo e começaram a conversar, enquanto me esperavam.
Outros que chegaram antes de mim foram os agentes do órgão de segurança do governo federal. Munidos de máquinas fotográficas, papel e lápis, ficariam o dia inteiro acompanhando o movimento, com discrição apenas relativa. Até certo ponto, queriam ser identificados, para estimular a moderação nos presentes, sobretudo nos políticos que porventura comparecessem.
Depois que eu cheguei, seguido pelos meus filhos, pelas pessoas que estavam na clínica e pelos jornalistas, o ritual finalmente pôde começar. Uma senhora desconhecida entrou a passos lentos na capela. Ao se aproximar de mim, puxou uma cartinha que eu lhe escrevera, agradecendo sua mensagem de Natal, e leu minhas poucas palavras. Quando terminou, conversando com o vazio, sussurrou suas despedidas e ocupou uma cadeira por ali.
Um motorista dos tempos de governo apareceu e ficou chorando em silêncio junto a mim, à espera da "comadre", como ele chamava minha mulher, para prestar sua solidariedade. Ao lado dele estava um antigo cabo eleitoral, que trouxe rosas vermelhas, minhas favoritas, e as depositou sobre a tampa do caixão. Esse tinha o olhar meio esgazeado, falava umas frases desconexas e exibia antigos folhetos de campanha, que guardava dentro da carteira, na esperança de que eu voltasse à política.
Minha mãe, de 83 anos, que morava no interior do Estado, soube do que havia acontecido por minha irmã e por meu médico particular. Com o máximo de cuidado, pois sua saúde era frágil e ela havia perdido meu irmão exatamente um ano antes. A duras penas, foi convencida a não tomar parte no funeral.
Minha viúva chegou às 10h45. Em seu rosto moreno e anguloso de camponesa italiana, transplantada dos Abrúzios para o vale do Paraíba e depois para o Palácio Guanabara, ela pusera um par de óculos com lentes bem grandes e pretas, como se usava na época. Logo foi cercada por nossos filhos e pelos cumprimentos de pêsames. Sentando-se junto ao caixão, lá ficou, até a hora do enterro. O arcebispo do Rio de Janeiro, ao entrar, foi até ela e também lhe apresentou condolências. Em seguida, rezou junto ao meu corpo. Abordados pelos jornalistas, minha mulher e meus filhos deram suas declarações.
O mais velho: "O que posso dizer numa hora como essa? É ruim para mim, para minha família e para o Brasil".
O do meio: "Tínhamos diferenças de opiniões, mas acho que ele mereceu as glórias que teve. Trabalhou muito".
A caçula: "Hoje é meu aniversário. Estava preparando uma festa, e o que recebo de presente? A morte do meu pai. É duro demais".
E minha adorável esposa: "Acho que ele vai trazer saudades a todos, amigos e inimigos". Eu, impassível debaixo da tampa do caixão, tinha o rosto mais fino do que nunca, e o nariz mais adunco. As pálpebras arroxeadas, as olheiras e as sobrancelhas pretas, na palidez em que eu estava, me deixavam muito parecido com meu pai. As rosas cobriam todo o resto.
q O PAVÃO APARECEU morto, sem explicação. Eu que o encontrei, no viveiro de pássaros. Repreendi o caseiro, por via das dúvidas, mas depois me arrependi, ao vê-lo todo tristonho, consolando suas crianças. Elas eram amicíssimas do animal, a quem chamavam de Clóvis, que vinha de Clóvis Bornay, na época o maior campeão dos concursos de fantasia de Carnaval. O dia transcorreu em clima de velório. Chegada a noite, só nos restava ir dormir, acabrunhados. Em plena madrugada, os cachorros começaram a latir no canil. Eu tinha ao todo sete deles, que dormiam a meia distância entre a casa do caseiro e a minha. Um casal de collies, um de pastores- alemães e três pointers. Latiam todos ao mesmo tempo, feito loucos, numa barulheira que tomou conta do sítio.
Levantei da cama assustado. Vesti uma calça e um chinelo. Peguei a lanterna e enfiei uma arma na cintura. Não acendi nenhuma luz. Com a mão na coronha do revólver, abri uma fresta da porta de entrada. Senti o ar que veio do jardim, gelado e úmido, mas não vi nada. Apontei a lanterna para a varanda e, sem detectar qualquer ameaça, dei um passo para fora da casa. Mas continuei de porta aberta, pronto a correr de volta se fosse preciso. O frio me deixou arrepiado e ligeiramente trêmulo. Tentei ouvir alguma coisa além dos latidos e do barulho que os cachorros faziam enquanto balançavam as telas de arame, jogando contra elas suas patas fortes e todo o peso dos seus corpos.
Acendi as luzes da varanda. Nenhuma sombra se mexeu. Devagar, olhando em volta e com a lanterna abrindo caminho, fui até o canil. Encontrei por lá o Jairo, meu caseiro, um típico alemão de Petrópolis, de rosto largo, olho azul-claro, pele muito branca e cheia de vincos. Ele acendeu as luzes, fazendo seu rosto brilhar como uma louça rachada. Embora estivesse do meu lado, tamanha era a barulheira no canil que mal escutei sua voz quando perguntou: "O doutor sabe o que deu neles?".
Balancei a cabeça negativamente. Eram todos cachorros grandes e saudáveis, mas em geral mansos, ou pelo menos maduros, bastante habituados à convivência do grupo. Os pastores eram os únicos, de vez em quando, a encrencar, sobretudo com os collies, mas eles não estavam brigando entre si. Eu nunca tinha visto um ataque de fúria igual.
O canil era dividido em baias, que podiam ou não se comunicar. Cada baia para um cachorro e, no fundo de cada baia, a tigela de água, a de comida, e uma grande casa de madeira, forrada com trapos e restos de cobertores e travesseiros. Examinei todo o ambiente: o piso e as muretas de cimento, as portas e os pontos de circulação interna, as telas, com seus dois metros de altura. Não havia nada lá dentro. Do lado de fora, também não encontrei nenhum buraco suspeito no arame, nenhum gambá, gato de rua, morcego ou ratazana cercando o espaço. Muito menos movimentação de gente. Vi apenas a mulher do caseiro, Fátima, na janela de sua casa, nos dando retaguarda à distância.
Um sopro de vento frio arrepiou novamente o meu corpo. No limiar da escuridão, reparei que as plantas do jardim balançavam, mas foi como uma cena de cinema mudo. Não era possível ouvir nada além das ressonâncias guturais que nasciam nas gargantas dos cachorros e explodiam na madrugada, ou o ruído áspero das telas do canil sendo sacudidas.
Até os pointers, os cães mais doces que pode existir, estavam transtornados. Latiam sem parar, e seus olhares fulminavam, fixos e ardentes, como se uma ameaça muito próxima rondasse o canil. Os collies, também latindo com força, agitavam seus fartos colares brancos de pelo e arreganhavam os focinhos esguios, mostrando dentes pontudos e de uma ferocidade incompatível com sua elegância aristocrática.
Um dos pastores-alemães, nesse momento, meteu os caninos por entre as malhas da tela, travou o maxilar e sacudiu a cabeça com tanta força que eu achei que iria conseguir arrancar a grossa trama metálica dos canos onde estava presa. Por sorte, o arame resistiu. Quando o pastor soltou a mordida, sua gengiva estava toda ensanguentada.

DURANTE BOA PARTE do dia, o movimento foi calmo na capela 1. Até o meio da tarde, menos de trezentas pessoas haviam aparecido. Se eu tivesse morrido dez, 20, ou mesmo 30 anos antes, um mar de gente viria logo atrás de mim. A tal cozinheira de um antigo vizinho, a primeira a assinar o livro de presença, estava indignada com a falta de comoção pública diante da minha morte e chegou a protestar para as três freiras dominicanas suas amigas: "Nem os ricos vieram. Parece que têm medo de desagradar aos vivos".
Concordando silenciosamente, as freiras pediram licença e vieram para junto do meu caixão, pondo- se a arrumar as rosas que iam sendo deixadas sobre ele. Mais do que a falta de quorum, revoltava-as o fato de minha família ter decidido manter o ataúde fechado. Queriam a todo custo ver o meu rosto. Bem baixinho, resmungaram um pouco. Como último recurso, uma delas tirou da bolsa o retrato autografado que eu lhe enviara anos antes e pousou-o sobre o tampo escuro.
Lá pelas 15h, o cemitério começou a encher, e os gestos de despedida se multiplicaram. Meus antigos aliados políticos e, em certos casos, até meus antigos adversários, ou seus representantes, foram aparecendo quase todos. (Enfim os agentes de segurança do governo teriam o que dizer nos relatórios.)
Eram vereadores, deputados, governadores e ministros, que vinham de ambos os lados do bipartidarismo imposto ao país. Para não falar de uma generosa representação de políticos veteranos como eu, retirados da vida pública. Os ex-presidentes que enfrentei no passado estavam mortos ou exilados, e com o atual eu não me dava, mas duas ex-primeiras-damas foram lá solidarizar-se com a minha viúva.
Além da classe política, vinha gente de todos os lados: centenas de admiradores anônimos, colaboradores e funcionários, amigos dos círculos mais variados. Na capela, cada vez mais cheia, a circulação foi ficando difícil. Depois de cumprimentarem minha família, para não atravancar demais o ambiente, as pessoas saíam de perto, abrindo espaço aos que continuavam chegando. Os anônimos iam para onde desse, enquanto os políticos ou voltavam para a entrada do cemitério ou saíam da capela pela porta dos fundos, indo se posicionar na espécie de rampa de paralelepípedos, uma aleia em nível, de onde o cortejo sairia. Num lugar ou no outro, ficavam à disposição da imprensa, que passou a colher depoimentos sobre mim.
Alguns defenderam integralmente a minha memória: "Jornalista imenso, orador assombroso, tribuno, intelectual, grande escritor, grande líder, grande filho do Brasil, defensor da democracia, visionário, trabalhador incomensurável, lutador, modelo de homem público, dono de espantoso poder de assimilação" etc. etc.
Outros foram mais ambíguos: "personalidade multifacetada, paradoxal, homem de atitudes fortes [leia- se 'radical'], talento incompatível com a mediocridade [no caso, 'intolerante'], inteligente até o desvario, homem cujos erros eram de uma dignidade enorme, animal político capaz de voos de águia e mergulhos de martim-pescador", e por aí foi. Também não faltou o inevitável epíteto "o mais cruel adversário de si mesmo". Até o filho do ditador do momento apareceu por lá, chamando-me de "o ídolo da minha geração".
De todas as análises que fizeram sobre mim, contudo, a mais interessante veio de um antigo aliado, e antigo adversário, que não compareceu ao velório. Ela chegou só com os jornais do dia seguinte. A primeira parte, sem dúvida, é para rir: "Homem cujo intelecto brilhante lutava com outros elementos igualmente fortes de sua personalidade, e não raro perdia". Mas a segunda parte, essa ele fez para machucar: "Nunca foi o que quis ser: um político, o líder que tem sempre a oferecer, ao companheiro de partido, a palavra exata no momento devido, o conselho providencial, o exemplo que inspira e abre caminhos. Faltava-lhe a paciência nos momentos mais difíceis e, com uma palavra ou um simples gesto, era capaz de destruir o longo caminho, obstinadamente construído com vicissitudes e traumatismo, em busca de um ideal".
Natural que ele dissesse algo parecido, considerando que atrapalhei os seus projetos políticos ainda mais do que ele atrapalhou os meus. Admito que exista algum fundo de verdade nisso tudo, e havia mesmo três tipos de político que eu não conseguia suportar: os que tinham boas soluções, mas não atuavam com a urgência necessária; os que resolviam tudo de um jeito rápido e precário; e os que pensavam a curto e a longo prazo, apenas em proveito próprio. Mas, tirando esses, com os outros eu sempre me dei muito bem.

O PASTOR-ALEMÃO tentou pela segunda vez arrancar a grade com uma mordida. Com a boca toda cortada, o sangue começou a molhar seu pescoço, escorrendo até pingar no chão.
Se algum bicho aparecera desavisadamente, perambulando em busca de comida no meio da noite, com certeza já estaria bem longe dali. Não era normal que os latidos continuassem, e até aumentassem, como se houvesse a iminência de um confronto. Os cachorros agiam como se eu e o Jairo não houvéssemos aparecido, como se não soubessem que os protegeríamos dali em diante. Eram lobos do outro lado da tela, regredidos à condição de seus antepassados selvagens, sem a sofisticação semântica e intelectual dos animais domésticos. Impossível entrar no canil para acalmá-los.
Um surto de raiva? Salivando muito eles estavam, e tinham o comportamento alterado, certamente. Mas o Jairo negou qualquer mudança em seus hábitos alimentares, e não víamos neles nenhum sinal de dificuldade para engolir, de espumação na boca ou de paralisia das patas traseiras. Pelo contrário, a maneira como se portavam naquele acesso de fúria demonstrava um vigor físico absoluto.
Precisávamos fazer alguma coisa. Ergui a voz e pedi ao Jairo que fosse até a cozinha pegar a carne do churrasco do dia seguinte. Ele me olhou surpreso.
"Amanhã a gente compra mais", eu disse.
Momentos depois, o Jairo reapareceu com a carne e um facão, tudo numa grande bacia de plástico. Agradeci e, sem pensar, disse a ele que podia ir embora. Eu não tinha nenhuma certeza de que alimentar os cachorros resolveria o problema, mas quis tentar sozinho. O Jairo ainda perguntou, novamente falando perto do meu ouvido: "O senhor não quer que eu faça isso, patrão?".
"Não, deixa que eu faço."
Debaixo de latidos, como se estivesse sendo expulso dali, ele tomou o rumo de casa. Foi caminhando lentamente entre as roseiras. Pareceu uma eternidade, até que as cortinas se fecharam e a luz se apagou no quarto do casal.

MAIS DE 50 coroas de flores se espalhavam pela capela, pelo hall e pela entrada do cemitério. O presidente de uma certa Academia de Brasilidade surgiu, munido de folhetos sobre a instituição, que passou a distribuir com a maior naturalidade entre os presentes. O atual prefeito, um antigo colaborador do meu governo, chegou às 15h45. Ele havia decretado três dias de luto oficial na cidade, gesto que, nas circunstâncias, exigia alguma coragem. Foi a única honraria oficial que recebi no meu enterro. Seu assessor de comunicação distribuiu aos jornalistas um depoimento sobre mim, gravado numa fita cassete.
Aqui e ali, o silêncio do governo federal era comentado discretamente. Em Brasília, o secretário de imprensa da Presidência da República havia se limitado a dizer: "Não tenho comentários. O presidente está no Riacho Fundo e não estive com ele hoje". O governo do Estado, por sua vez, também não se manifestara oficialmente. O titular do cargo estava fora do país e sua esposa não passou no velório mais de alguns minutos.
Mesmo assim, a partir das 16h, o afluxo de gente se tornou problemático. Das 300 pessoas que haviam passado pelo cemitério até o meio da tarde, em pouco mais de uma hora a taxa de comparecimento havia atingido 2.000. A superlotação obrigava as pessoas a entrarem em fila pela porta principal da capela 1 e, sendo empurradas pela massa que vinha atrás, elas eram expulsas pela porta dos fundos. Mal dava para respirar em volta do meu caixão, e o calor se tornou insuportável.
As autoridades recém-chegadas foram para a rampa de onde sairia o cortejo, o local menos movimentado em todo o prédio, e o mais fresco. Uma vez lá fora, o prefeito ficou ao lado de um ex- ministro, que conversava em voz baixa com um deputado e interrompia sua fala cada vez que alguém se aproximava. Ao repórter de uma emissora de televisão, que teve de insistir muito para conseguir a entrevista, o ex-ministro disse estar ali para "prestar homenagem a um amigo muito querido".
Por motivos diferentes, minha família, os agentes de segurança e os políticos presentes não contribuíam para dar ao meu velório um caráter político. É bem verdade que, enquanto um antigo correligionário, ex-governador da Paraíba, dava ao rádio um elogioso depoimento sobre mim, um ex- vereador carioca, perto demais para não ser ouvido, começou a interpelá-lo: "Não adianta elogiar agora! Por que ficou calado quando ele precisava de apoio?". Mas foi um caso isolado.
Às 16h15, o reitor do Colégio São Bento, que me casou e de quem recebi a primeira comunhão, aos 34 anos (coisas de ex-comunista), começou a celebrar a missa de corpo presente. Juntaram-se a ele o meu confessor, que cumprira a promessa feita anteriormente de voltar para o enterro, e dois dominicanos que eu não conhecia. Minha mulher, meus filhos e meus netos escutaram a pregação de cabeça baixa, com as mãos dadas. Foi o único momento em que autorizaram a abertura do caixão.
"Abri-lhe, Senhor, a porta do paraíso, para que volte àquela pátria onde não há morte, mas eterna alegria."
A realização da missa, no entanto, interrompeu o fluxo de gente que atravessava a sala, pois as pessoas que iam chegando queriam ficar para assistir, e como nenhum esquema de circulação alternativo fora organizado, o caos realmente tomou conta. A impaciência dos que não conseguiam se aproximar do caixão logo virou coisa pior. Começaram a chegar gritos de protesto vindos de fora, lá da entrada do cemitério, e, na porta da sala, a fila virou um bolo de gente. As pessoas passaram a empurrar os que estavam na sua frente, que por sua vez empurraram de volta. Uns espertinhos ainda resolveram escapar da bagunça, contornando o edifício e entrando na capela pela porta de saída.
Aí o aperto se generalizou, a confusão ficou realmente perigosa. O presidente da Associação Brasileira de Imprensa quase foi esmagado; uma freirinha perdeu a touca e ameaçou desmaiar; meus netos, ainda pequenos, se assustaram e começaram a chorar; dois homens trocaram um chega pra lá mais vigoroso, meio começando a brigar. Tentando conter os ânimos, surgiram gritos de "Olha o morto!", "Respeitem o morto!".
Alguns dos meus parentes, que esperavam na rampa de saída, pediram calma à multidão. Vendo a aflição deles, o Azeitona, um negro alto e forte, ex-policial militar e meu empregado de confiança nos tempos do governo, tentou salvar a situação, passando a funcionar como leão de chácara na porta dos fundos. Só as pessoas da família ficaram autorizadas a entrar na capela por ali.
Na porta da frente, porém, o tumulto correu solto, até fugir ao controle de vez. Uma mulher, no meio da fila, gritou que a estavam machucando. Outra desmaiou. Um homem baixo, de blusão azul, começou a empurrar as pessoas que se acotovelavam na sala, em volta do caixão. Outro gritou: "Vamos sair, vamos sair que tem gente morrendo lá atrás". Pedidos de socorro, ouvidos no alto da rampa, alarmaram a todos e provocaram o choro nervoso de algumas senhoras.
Ao perceber que a tragédia era iminente, o monge beneditino que rezava a missa decidiu abreviá-la. Foi a melhor coisa que fez. A massa voltou a andar, ou melhor, a se descomprimir lenta e dolorosamente. O nível de tensão no ar diminuiu. Mesmo assim, o velório, como a missa, foi encerrado abruptamente, para a segurança de todos. Meu filho mais velho mandou fecharem de novo o caixão, apesar dos protestos das pessoas que ainda não tinham conseguido me ver. Não fui coberto com a bandeira do Estado, nem com a do país.
Nessa hora, justo quando a normalidade pareceu voltar ao ambiente, veio uma mulher histérica, com uma rosa na mão, rompendo capela adentro. Ela se jogou aos meus pés e começou a gritar: "Abram o caixão! Pelo amor de Deus! Eu trouxe essa flor para ele!"
Mal recuperada do susto provocado, minutos antes, pelo empurra-empurra, minha família se entreolhou, de novo espantada com a força da minha ausência, até que alguém teve a gentileza de acompanhar aquela senhora para longe dali.
Tendo saído da capela, o reitor do Colégio São Bento viu-se rodeado por repórteres, e foi a vez de a Igreja dar o seu "juízo final" sobre mim: "Se me perguntarem se ele foi um cristão, direi que um cristão disciplinado ele não foi. Se pensarmos, porém, num cristão à semelhança do que foi dito ao profeta Daniel, homem de desejo, homem de aspirações, homem colocado sequioso e suplicante diante da eternidade, homem de fome e de sede de justiça, isso ele foi."
As palavras "fome e sede de justiça" seriam consideradas, no dia seguinte, uma alfinetada elegante no governo federal, mas na hora, em pleno tumulto, nem sequer foram notadas.
Às 16h30, meia hora antes do programado, o cortejo deixou a capela 1. Meu caixão saiu carregado por dois dos meus filhos e por quatro amigos, enquanto meu filho do meio amparava a mãe, à frente da procissão. Devido ao abatimento e ao cansaço, minha viúva nem conseguiu protestar com muita ênfase contra a pressa em acabar logo com o enterro.

MUITOS ME ACUSARAM de ser incoerente, mas sempre achei que era uma virtude mudar de ideia toda vez que tinha uma ideia melhor. A política, ela própria, é tudo, menos constante. Adquire novas formas e novos sentidos a todo momento, e nos confronta com dilemas que nunca imaginamos existir, que dirá ter de enfrentar. Ela é pitoresca e cheia de intrigas, cômica, irônica e incompreensível, cruel e bizarra, humilhante, patética e surreal, injusta, dolorosa e deprimente, generosa, exigente e capaz de grandes realizações, irritante, ilusória e escapista. Pode até não ser nada, ou quase nada.
A angústia das novas gerações, por exemplo, parece grande demais para que um comício a aplaque, um voto a satisfaça ou um simples mandato eleitoral dê vazão a seus impulsos. Não sei se é possível, não sei nem mesmo se é desejável, "entender de política". Essa expressão, para mim, sempre soou mal, como se anunciasse um infinito repertório de subterfúgios, de adiamentos, de posicionamentos complacentes com os problemas do país. Ela, para valer a pena, precisa ser vivida com a máxima intensidade.
Depois de alguns anos acompanhando-a de longe, seu poder de me arrebatar acabou. Não vi mais sentido em ficar freneticamente tocando a campainha. Acabei engolido por um mistério ainda maior, só meu, que a antecedia na minha vida e que voltou para me buscar.
Se eu pudesse dar ao cidadão brasileiro um único conselho (e o cacófato aí, proposital, pode indicar o valor que a essa altura eu dou para os conselhos), seria o seguinte: nunca acredite no político que só te dá boas notícias.

AJOELHADO DIANTE do canil, senti nas mãos o toque, a textura e a consistência das carnes cruas - uma picanha, uma costela bem gorda e duas peças de maminha, além de três cordas de linguiça caseira. Em meio ao barulho infernal dos latidos, fui cortando os nacos de carne com o facão, que rasgava sem dificuldade nervos, gorduras, fibras e feixes de músculos.
Joguei os primeiros pedaços por cima da tela, na maior expectativa, mas todos os cachorros continuaram latindo com a mesma intensidade, e nem quiseram saber de comida. Tentei falar com eles, mas foi pura perda de tempo. Joguei novos pedaços por cima das telas, e os pointers, graças a Deus, silenciaram, começando a cheirar a comida e, em seguida, a efetivamente comer. Mas ainda em guarda, assustados até consigo mesmos, e me pedindo ajuda com os olhos.
Mais carne voou, e foi a vez de os collies fazerem aquela pausa aflita. Entre os pastores-alemães, a fêmea olhou para as baias ao lado e ficou em dúvida, mas também acabou aceitando a comida. Dos sete cachorros, apenas o que estava machucado não comeu nada, mas, uma bela hora, parou de latir. Ele me encarou, porém, com raiva nos olhos, e começou a rosnar na minha direção.
E se tudo aquilo fosse um pedido de socorro? A boca sangrenta do meu pastor-alemão, talvez só o medo imediato da morte explicasse. O que poderia estar escondido lá dentro? Se estivesse esperando uma chance para matar os cachorros, jogar a carne por cima da grade, fazendo-os parar de latir, seria um favor ao inimigo. De um lado, atiçava seu apetite; de outro, amolecia a defesa de suas vítimas. Apontei de novo a lanterna para os vãos mais escuros das baias, entre as casas dos cachorros e a parede dos fundos do canil. Não vi nada.
Cravei o foco de luz dentro das casas. Tudo o que consegui ver foram trapos fedorentos. Até senti o cheiro deles. Um cheiro que, se aos humanos como eu podia parecer sempre igual, simplesmente "cheiro de cachorro", para cada um daqueles animais era parte importante da sua identidade e tinha diferentes significados em sua comunicação com os outros. Se eu soubesse diferenciar esses cheiros, se eu desenvolvesse minha percepção a ponto de entender seus sentimentos pelo olfato, talvez entendesse do que tinham medo, do que precisavam, e pudesse atuar.
O rosnado do pastor ganhou corpo no meio da noite, se alastrando, tornando-se mais profundo e mais constante. Virou uma respiração cava, horrível, um aviso sinistro que me deixou arrepiado. Olhei para os seis outros cachorros, a tempo de vê-los se encolhendo no fundo das baias, com as orelhas baixas e os rabos entre as pernas. O pastor-alemão, ainda com a boca pingando sangue, era o único que permanecia junto à tela. Mas agora, ao encará-lo de novo, para meu total espanto, percebi que não era mais dele o rosnado que eu ouvia. Ele, na verdade, olhava através de mim.

O CÉU ESTAVA AZUL, limpo e sereno. Mas, no cemitério São João Batista, o enterro continuava agitado. Ao longo do percurso de 500 metros entre a capela 1 e o jazigo da minha família -lote 4118, quadra 39-, a multidão enchia as aleias estreitas e improvisava desvios por entre os túmulos. Embora nenhum cartaz e nenhuma faixa com palavras de ordem tenham se erguido, e um vago protesto fosse visível apenas no rosto das pessoas, lá na frente, nas imediações do jazigo, ao receber a notícia de que o caixão estava a caminho, uma segunda multidão se agitou. Eram pessoas que, sem ter conseguido se espremer para dentro do velório, haviam se dirigido antecipadamente ao local do enterro. Agora se acotovelavam entre os túmulos, ou mesmo subiam em cima deles, no intuito de conseguir uma boa visão do ritual.
"Só Deus pôde contigo!", gritou uma admiradora desconhecida. Com o tampo coberto de flores, o caixão foi avançando e abrindo um clarão na massa de gente. Mas a multidão era tanta, e estava tão compacta, que a partir de um certo ponto aqueles que o carregavam não puderam continuar. O jeito foi transportá-lo por sobre a cabeça dos presentes, passando-o de mão em mão. Só faltava me deixarem cair. E mesmo esse transporte precário só foi possível porque, à passagem do caixão, o empurra-empurra cessava momentaneamente.
Flutuando sobre o mar de braços e mãos, levei 26 minutos para chegar à beira do túmulo, o que aconteceu exatamente às 16h55. Entre gritos e empurrões, muitas mulheres desmaiaram ao longo desse trajeto. Os homens suavam em bicas e alguns continuaram a se estranhar. O aperto e o desconforto eram totais. Se alguma coisa fizesse a multidão se abrir subitamente, muita gente sairia machucada.
Minha própria família havia ficado para trás, e também vinha se espremendo por entre a multidão. Sem reconhecê-los no meio de tanta gente, o povo demorava a lhes dar passagem, reivindicando para si os melhores lugares para acompanhar o ritual. Os que já estavam no lote 4118 gritavam para os que vinham da capela: "A gente está aqui desde as quatro horas. Quem chegou depois que veja de longe!". Finalmente dois dos meus filhos conseguiram despontar do meio da aglomeração, seguidos pelo terceiro, que vinha com a mãe.
Meus netos, ainda crianças, viam aquilo tudo amplificado, de baixo para cima, com os olhos arregalados, mal conseguindo respirar. Reconheci neles o medo que senti quando meu pai, após ser preso e torturado pelo governo, mostrou-me suas radiografias, nas quais se podiam ver, nitidamente, as duas agulhas deixadas de propósito no seu corpo para que morresse de septicemia. Ou o medo que vi no rosto dos meus filhos, quando sofri um atentado a tiros na porta de casa e cheguei sangrando, ou quando cheguei em casa novamente arrebentado, após levar uma surra de dois capangas de um político adversário.
No mesmo jazigo onde eu seria enterrado, estavam meu pai, meu irmão, meu tio e sua esposa. No alto, havia um crucifixo de cerca de um metro e, nele, uma placa de metal com as palavras: "Que este Cristo seja nosso traço de união". Era uma frase do meu avô paterno, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal. Talvez idêntica, em outros termos, a outra frase dele, inscrita na estátua em sua homenagem que ficava na praça principal da cidade, antiga pérola cafeeira, onde foi prefeito duas vezes: "Comparecerei sereno perante a justiça de Deus, por não ter querido deixar na Terra a justiça dos homens como uma palavra vã e sem sentido". Essa é uma citação do habeas corpus que ele redigiu em favor dos tenentes, apenas uma semana antes de morrer (ou pelo menos assim dizia a tradição familiar).
Com rosas nas mãos, algumas mulheres pediram licença para subir num túmulo vizinho, já inteiramente tomado por fotógrafos. A informação de que a laje estava cedendo, provavelmente mentirosa, fez com que desistissem.
Com muito custo, o reitor do Colégio São Bento e algumas autoridades conseguiram se aproximar da minha família. Quatro cestas com pétalas de rosas vermelhas foram depositadas à beira do túmulo. Em torno da sepultura e sobre os túmulos adjacentes, o vozerio e a disputa por melhores lugares finalmente cessaram. Os serviços iriam começar.
O arcebispo debruçou-se sobre o caixão, para me dar a última bênção. Em seguida, pediu que os presentes rezassem um pai-nosso. Quando todos deram amém, quatro funcionários da Santa Casa começaram a baixar lentamente o meu caixão.
A multidão, entretanto, intuía que a maior homenagem a mim devida seria um belo e inflamado discurso. Quantos iriam falar à beira do meu túmulo? Quem se encarregaria de transformar o meu enterro num ato cívico? Isso era o que todos se perguntavam, mas ninguém conhecia o cerimonial, a sequência de pronunciamentos, nada. E havia um motivo muito simples para tanta indefinição: ninguém havia sido escalado como orador, pois ninguém havia se oferecido. Nenhum dos políticos presentes tivera esse gesto, nem para uma fala bem curta, o que, sabendo como são os políticos, é uma circunstância inesperada.
A presença do serviço de inteligência certamente tinha muito a ver com isso, mas não era o único motivo. Muito decepcionado, um senhor anônimo comentou: "É uma tristeza ver um homem público baixar à terra e nenhum outro homem público tomar a palavra". Eu, pessoalmente, não me surpreendi. Estava pagando pelos meus erros e pelos meus acertos.
Após instantes de hesitação, com as pessoas trocando olhares ora tímidos, ora desconfiados, surgiram, do nada, primeiro em tom baixo, depois com mais vozes e maior intensidade, os versos do hino nacional. Logo todos estavam cantando. Quando terminaram, houve uma longa salva de palmas. Uma chuva de pétalas caiu sobre mim. Lenços brancos foram agitados.
Duas senhoras, à esquerda do meu jazigo, comentaram a "calma e resignação" de minha viúva. Mas logo silenciaram, ao ouvir um novo coro: "Brasil! Brasil! Brasil!"
Enquanto isso os fotógrafos trabalhavam, colhendo ângulos, procurando faces angustiadas, capazes de revelar o sentimento de frustração e desespero de alguns dos presentes. Ou então, quem sabe, a indiferença de outros. Mas o povo mesmo, este só queria emoções fortes, gestos simbólicos, e novamente começou a cantar; agora, um hino local: "Cidade Maravilhosa/ Cheia de encantos mil/ Cidade maravilhosa/ Coração do meu Brasil!".
De pé, em cima de outro túmulo, um homem gritou, raivoso, pedindo o impossível: "Enterra o Brasil com ele! Enterra o Brasil com ele!".
Quando meu caixão baixou completamente, o tal presidente da Academia de Brasilidade, sobraçando seus famigerados folhetos promocionais, tomou a palavra. Não era ninguém importante, mas pelo menos era presidente de alguma coisa, e falava minimamente bem. Uma dada hora, comparou a revolução a uma entidade mitológica, que devorava os próprios filhos. Até aí, nada de original, eu sei; também já li essa comparação em algum clássico da ciência política -Edmund Burke, salvo engano.
Mas o sujeito completou a idéia com um golpe retórico interessante, dizendo que a última revolução fora mais longe, devorando um de seus pais. Para um amador, líder de uma agremiação com apenas um membro -ele próprio- até que o sujeito se saiu bem. Havia de fato muita "brasilidade" naquele discurso.
Subiu no túmulo, de repente, um ex-funcionário do meu governo, agora aposentado, que falou daquela época como a de uma "revolução sem sangue". Lembrou das grandes obras que mudaram a vida da população, das grandes conquistas no ensino público, da mentalidade administrativa moderna que implantamos, e terminou em altos brados, exortando as pessoas: "Queremos o Brasil que ele queria para os nossos filhos! Será que o ideal vai morrer com ele?".
Minha família, meus amigos, os políticos presentes, fossem aliados ou adversários, olhavam tudo aquilo com certo constrangimento. Havia-se pretendido uma cerimônia destituída de qualquer conteúdo político, que dirá de palavras explícitas de protesto. Mas a plateia ainda queria mais, e quem estava criando caso não era de nenhum partido específico, não tinha cargo nem ficha na polícia política. Era aquele povo, meio peixe (sempre achei que o habitante do Rio, além de gente, é meio peixe. Em bando, não se pode apanhá-lo sem grandes redes predatórias. Individualmente, é inapreensível. Quando você pensa que o pegou, ele se debate, escorrega da sua mão e volta para dentro d'água). O revezamento imprevisto, um tanto canhestro, explicitava de forma constrangedora a omissão dos oradores profissionais. Pois que calassem a boca, pelo menos uma vez na vida, para escutar. Eu havia calado a minha.
Um terceiro orador, com a voz embargada, discursou como se conversasse comigo: "Eles te cassaram, mas o povo não te cassou!". Deplorando o "estado de coisas" no país, pediu que os presentes fizessem uma oração a são Francisco de Assis.
Terminada a oração, outro sujeito apareceu, sugerindo que a multidão deixasse o cemitério de mãos dadas, cantando de novo "Cidade Maravilhosa". As mulheres disputavam papel e caneta, para anotar o número da minha sepultura. Uma delas me disse: "Adeus. Descansa em paz, e olha por esse nosso Brasil".
Finalmente os coveiros começaram a botar a primeira laje sobre a minha sepultura. Os políticos começaram a ir embora. Para se despedir de mim, e deles, a multidão tornou a cantar: "Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, do povo heroico o brado retumbante...".
Já anoitecia quando minha família foi para casa. Lentamente, o cemitério foi esvaziando. Cerca de 150 pessoas ainda ficaram por ali, assistindo aos funcionários da Santa Casa trazerem as coroas de flores que estavam na capela, e aproveitando para me dizer suas últimas palavras.
Uma senhora desconhecida, que se ajoelhou na beira do túmulo, me fez a seguinte pergunta: "Lembra daquele tempo? De quando estávamos todos com você, nas praças, nos comícios...?"


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