São Paulo, domingo, 20 de março de 2011

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ARQUIVO ABERTO

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O mundo em um jardim

Belo Horizonte, anos 60

REGINA HORTA DUARTE

Um marco decisivo da minha passagem da infância à adolescência foi a derrubada do jardim de minha casa, em 1977. Apesar de absorvida pelas inquietações da puberdade, assisti com tristeza às obras que papai empreendeu para construir uma garagem.
O jardim tinha sido meu lugar preferido. Menina excessivamente tímida, utilizei-o como ponto estratégico de observação da rua e do mundo exterior. Em segurança, pratiquei ali o exercício da curiosidade.
Explorei o mundo subterrâneo das minhocas e formigas, colecionei joaninhas para depois libertá-las e aguardei beija-flores. Investiguei folhas e sementes, secando-as para marcar as páginas prediletas dos livros de Monteiro Lobato. Degustei hortelãs crescidas ao acaso e desenvolvi técnicas para a delicada construção de guirlandas de flores. Em cada manhã, construí meu mundo em um jardim.
A renda modesta de meus pais lhes permitiu possuir uma casa velha, mas espaçosa para os seis filhos. O jardim tinha 50 m2. Havia o buquê de noiva plantado em homenagem a minha irmã Vera; o hibisco alto e rodeado de abelhas; as açucenas, cuja floração anual era sempre comemorada; a romãzeira originada de sementes acidentalmente jogadas por um menino que pedia pão. Os vizinhos levavam folhas do sabugueiro para fazer chá.
O que eu não sabia, aos 13 anos, é que a derrubada do "meu" jardim sintonizava com outros eventos em curso. No contexto do milagre econômico, meus pais ascenderiam de uma condição humilde à categoria de classe média.
Nosso acesso a bens de consumo cresceu significativamente. Em 1969, meu pai comprou um Dodge 1951 e a primeira televisão. Nos anos seguintes, comemoramos, sucessivamente, a compra da radiola, do toca-fitas, do telefone. Em 1973, alcançamos o privilégio das férias de verão, mineiros no Espírito Santo. Viajamos de Aero Willys, disputando a estrada com um enxame de automóveis de passeio, amedrontados pelas fileiras intermináveis de caminhões carregados de minérios.
Em Minas Gerais, a mineração legava cenários apocalípticos de crateras abandonadas, rios poluídos, flora e fauna dizimadas. Indústrias siderúrgicas seguiam a pleno vapor, convertendo matas tropicais e cerrado em carvão vegetal. O reflorestamento subsidiado gerou vastas plantações de eucalipto, erguidas por trabalhadores em condições degradantes. Essa árvore consolidou-se como solução mágica para o problema da devastação das matas nativas: de crescimento rápido, representava um investimento financeiro de retorno garantido e assegurava suprimento energético para as indústrias. Tal furor convivia com apelos ufanistas de uma natureza brasileira infinda.
O movimento "Olhe bem as montanhas..." clamava contra o fim do belo horizonte da capital, consequência da destruição da serra do Curral pela mineração. Moradores da região centro-sul ouviam, apreensivos, os estrondos das explosões de dinamite realizadas na serra. Constatavam, dia após dia, a espantosa alteração de seu traçado.
De cidade jardim, restou apenas o título. Desde 1962, o sucessivo sacrifício de árvores para alargamento das ruas apoiou-se na euforia desenvolvimentista, mas gerou o lamento de muitos. Entre 1967 e 1971, a prefeitura ganhou fama pela avidez da derrubada da arborização urbana. O aumento impressionante da frota de veículos demandava passagem.
O mesmo aconteceu em minha casa. Uma vez construída, a garagem abrigou vários carros, todos acessíveis ao bolso de meu pai, a exemplo do Simca Chambord 1960 orgulhosamente dirigido por meu irmão Pedro. Na época, não contei a ninguém sobre o que senti. Sem saber, tinha companheiros ilustres em minha dor: um ano antes, Carlos Drummond de Andrade decidira não mais voltar ao "Triste Horizonte". Entre os motivos poeticamente enumerados, lamentava a transformação dos jardins da histórica igreja São José.


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