São Paulo, domingo, 20 de junho de 2010

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DIÁRIO DE LISBOA

O mapa da cultura

Dois inéditos de Vergílio Ferreira

Dilemas da edição póstuma

ISABEL COUTINHO

Eça de Queirós achava que se deviam publicar de um homem célebre até as "contas do alfaiate". Quem conta isso é o escritor Vergílio Ferreira [1916-96] num dos volumes dos seus diários, "Conta-Corrente". Está a falar de uma discussão que teve com a sua mulher, Regina Kasprzykowski, a propósito da publicação do romance inédito de Eça de Queirós "A Tragédia da Rua das Flores".
Discutiam os dois se é lícito ou não publicar-se o que um autor rejeitou. Para Vergílio Ferreira, "um autor não dá garantias quase nenhumas (mormente quando grande autor) sobre a valia do que realiza. E não há obra medíocre alguma de um autor que lhe destrua a obra superior".
Em Portugal, anda a discutir-se o tema. Por estas semanas, chegaram às livrarias dois inéditos do autor de "Para Sempre", editados pela Quetzal: uma novela ("A Curva de Uma Vida", 1938, a primeira história que escreveu) e um romance ("Promessa", de 1947). É um acontecimento.
Passados tantos anos depois da publicação de "Cartas a Sandra", o último romance do Prémio Camões 1992, já saíram do seu espólio um "Diário Inédito" e essas duas obras. "Promessa", que teve como primeiro título "Sequência", é o único romance inédito completo que existe no espólio. A decisão de o trazer a público não foi fácil de tomar para a equipa de investigadores e professores, que está a estudar, catalogar e anotar a sua obra.
Começa assim: "Agora que Sérgio morreu, contarei como tudo se passou. Tanto mais que para alguns o assassino fui eu. Pulhice. Ou estupidez. Ou apenas juízo fácil de quem tem pressa de concluir. Sérgio, se morreu do modo como morreu, foi só porque a sua vida o estampou contra um muro."
Flávio, um jovem de 18 anos, fala de Sérgio -o seu professor- ao longo do livro. Por lá passam tertúlias e discussões sobre o existencialismo. É um livro de ideias, influenciado por Hegel, que naquela época o escritor acabara de ler.
Os investigadores têm consciência do "carácter datado" do romance, sabem que pode ser difícil para o leitor comum, que talvez haja nele excesso de diálogos, mas acreditam que amplia o conhecimento do autor de "Manhã Submersa"(1954).
Há cerca de 30 anos, o escritor falou da existência deste romance, que escreveu antes de "Mudança" (1949), ao académico Hélder Godinho, que dirige a equipa de investigadores. Emprestou-lhe o original dactiloscrito porque Godinho preparava uma tese de doutoramento sobre a sua obra.
No seu diário, Vergílio Ferreira foi ainda mais longe. "Saber como se errou, progrediu, hesitou -tudo são modos de ampliar o conhecimento de um autor. De qualquer modo, se um artista não quer que se lhe conheça a obra, destrua-a ele."E Vergílio Ferreira não destruiu a sua.

FANTASIA LUSITANA Foi uma encomenda. Pediram ao realizador de cinema português João Canijo (autor dos filmes "Ganhar a Vida", "Noite Escura" e "Mal Nascida") que fizesse um documentário sobre a passagem de refugiados famosos por Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas quando a ideia passou a ser dele, João lembrou-se das histórias que os seus avós lhe contavam, das mulheres estrangeiras de pernas traçadas a fumar na pastelaria Suíça no Portugal do Estado Novo [1933-74].
E assim nasceu "Fantasia Lusitana", onde, com a ajuda de filmes da propaganda salazarista dos anos 1940, mostra os dois níveis de realidade que existiam em Portugal na época, o mundo em guerra (lá fora) e a fantasia do país neutral (o mito criado por Salazar). Imagens da Exposição do Mundo Português ou da inauguração da estátua do Cristo-Rei ("tudo pela nação, nada contra a nação") passam à nossa frente.
E em contraste, vamos ouvindo vozes de atores a lerem textos escritos por estrangeiros que passaram por aqui à espera de um barco que os levasse para fora da Europa: Alfred Döblin (o autor de "Berlin Alexanderplatz"), Erika Mann (a filha de Thomas Mann) e Saint-Exupéry. Há quem o considere já "o melhor documentário sobre o Estado Novo de todo o cinema português".

A SONHAR ACORDADOS Não sei se foi de um dia para o outro. O que sei é que um dia, ao passar pela avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, olhei para o lado e senti que não estava sozinha.
Vi que os dois prédios devolutos, que ali estão faz tempo, deixaram de ser cinzentos. Num deles, um homem gigante, com uma coroa amarela na cabeça, bebe agora o mundo por uma palhinha.
Ao seu lado, um homem de cara amarela, tapada com um lenço colorido, estende-nos a mão gigante e aperta um outro homenzinho de óculos.
A arte dos gémeos brasileiros chegou finalmente a Lisboa e deixou os lisboetas a sonhar acordados. Os paulistanos Otávio e Gustavo Pandolfo já não vinham à capital portuguesa desde 1999, regressaram e arrasaram.
Não só grafite nas ruas mas também "Pra Quem Mora Lá, o Céu É Lá", a primeira grande exposição dos gémeos em Portugal, no Museu Colecção Berardo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Uma selecção das obras mais mediáticas e trabalhos produzidos no próprio local podem ser vistos até 19 de setembro.


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