São Paulo, domingo, 20 de junho de 2010

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ARQUIVO ABERTO

Memórias que viram histórias

O capitão loucura

São Paulo, 1996

SERGIO COHN

OUTRO DIA, OUVI UMA PROVOCAÇÃO absurdamente verdadeira de Cláudio Prado, nosso poeta do digital: "É mais fácil transformar uma lan house numa escola do que uma escola numa escola".
Imediatamente me veio em mente a formulação de Roberto Piva, 25 anos atrás: "A escola se coa??gulou em Galinheiro onde se chocam a histeria, o torcicolo & a repressão sexual, não existindo mais saída a não ser fechá-la & transformá-la em Cinema onde crianças & adolescentes sigam de novo as pegadas da Fantasia com muita bolinação no escuro".
Digo isso porque se alguma vez frequentei um espaço que poderia de alguma forma chamar de escola, esse foi a diminuta sala de estar do apartamento de Roberto Piva no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, onde por anos (pelo menos dos meus 19 aos 23, o tempo de uma graduação), junto a Priscila Queiroz, Danilo Monteiro e Daniel Chaia, nos encontrávamos para passar a tarde comendo baguete italiana ao forno com manteiga e alho, beber cervejas estupidamente geladas (em copos guardados no congelador) e ler e discutir poesia.
Nessas tardes, Piva recitava ou fazia traduções orais de poemas de surrealistas como René Crevel, Jean-Pierre Duprey e Paul Éluard, expressionistas como Gottfried Benn e Georg Trakl ou italianos como Dino Campana. Ou passava horas nos explicando a complexidade da "Invenção de Orfeu" de Jorge de Lima. Ou lia (algumas vezes em tradução simultânea) textos de Octavio Paz, Mircea Eliade e Pier Paolo Pasolini. Ou conversava sobre ecologia e xamanismo.
Piva estava lendo o biólogo espanhol Ramon Margalef, no seu brilhante "O ecossistema como um sistema cibernético", e radicalizando a sua teoria de que onde já não existem mais os grandes predadores, o ecossistema está inteiramente deteriorado (o que iria culminar na frase definitiva: "Eu quero é ver a onça-pintada andando novamente na avenida São João"). Isso tudo envolvido em ?John Coltrane, risadas e delírio.
O poeta que encontrávamos lá já não era mais o Roberto Piva de "Paranoia" (1963), onde criava, em cortes de videoclipe, uma visão delirante da cidade de São Paulo, bastante influenciada pela poesia surrealista e a geração Beat.
Nesses quase 40 anos, muita coisa havia acontecido: o mergulho definitivo na contracultura e nos alucinógenos, o deslocamento do interesse da cidade moderna para o conhecimento arcaico dos povos da floresta. Era um poe??ta informado pela antropofagia oswaldiana e pelo delírio de Artaud, buscando antes de tudo uma dicção extática.
Mas, como diria Guimarães Rosa, "um grande mestre não é o que ensina, e sim o que de repente aprende". E Piva sempre soube ouvir e conversar. Sentava, perguntava nossas inquietudes, o que fazia jovens como nós mergulhar na poesia, que força motriz era essa que perpassava o tempo e se renovava a cada geração.
Lia nossos poemas, discutia, criticava, ainda mais quando, ingenuamente, tentávamos imitar a voz dele. Dizia que era impossível a mesma dicção em gerações e personalidades tão diferentes, e que precisávamos nos informar para encontrarmos uma voz que fosse, por assim dizer, autêntica.
Sonhava em fazer uma antologia da poesia jovem, com o mesmo título da proposta por Pasolini: "A Voz Violenta da Novíssima Poesia Brasileira".
Por tudo isso, foi lisonjeiro, mas não surpreendente, quando Piva convidou a mim e a Bruno Zeni para ser entrevistados num projeto que realizava para a Funarte, "Meditações de Emergência".
O ano era 1996, e estávamos publicando o terceiro número da revista "Azougue". Conversamos sobre a "Azougue", a nossa poesia, o encontro com a poesia da geração de 60.
Rimos e fizemos leituras, abrindo espaço para Sendi e Gustavo, então ainda adolescentes, lerem também seus textos. Gustavo, o maior companheiro de Piva. Realmente não surpreendia, era apenas mais uma prova da sua generosidade, sempre latente, dando livros a cada encontro, sabendo que, se não fosse por ele, dificilmente chegaríamos a esses conhecimentos.
Roberto Piva é, foi e sempre será um mestre. E um amigo.


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