São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2011

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DIÁRIO DE LISBOA
O MAPA DA CULTURA

Cartografia lusa da crise

Por cá, ninguém anda a dormir na forma

ISABEL COUTINHO

ENTRE OS DEZ melhores trabalhos de arte urbana no mundo, segundo o jornal "The Guardian", está o dos brasileiros Osgemeos, do italiano Blu e do espanhol Sam3 num prédio devoluto na avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa. O grafite lisboeta foi feito um mês depois do derrame de óleo no golfo do México, em 2010.
Há pouco, foi a vez de o português Pantónio (pantonio.net) mudar a sinalética da cidade e pôr em prática o lema "mudam-se os tempos, mudam-se os lugares". É a crise. Uma placa ao pé do Banco de Portugal passou a ler "BCE" (Banco Central Europeu, em Frankfurt). Perto das Amoreiras, uma inscrição em chinês anunciava: "Vende-se país". Por cá, a intempérie econômica despertou os espíritos; ninguém anda a dormir na forma.
Pantónio pretende voltar à carga, agora que as placas foram "limpas": "Estou à espera do dia mais pertinente para intervir". Ele quer fazer arte em outros países, como Grécia e Espanha, "mas gostaria que fosse um trabalho que puxasse à participação colectiva".

NA CAMA COM PESSOA
Desde o dia em que a cama daquele que foi o quarto de Fernando Pessoa (1888-1935) ganhou um colchão novo, ocorreu a Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa, convidar escritores a dormirem nela, escrevendo depois sobre essa noite. João Gilberto Noll foi o primeiro a se acomodar na casa na rua de Coelho da Rocha, 16, em Lisboa, onde o poeta viveu os últimos 15 anos de sua vida.
Algo de especial se deu então: "Eu, que tenho problemas de insônia, dessa vez adormeci profundamente, só acordando quando a manhã se anunciava". Numa das paredes, em frente à cama, estava o verso: "Nunca desejei senão o que nem podia imaginar". Noll não o conhecia, e a descoberta o marcou. "Porque eu também busco o impossível e me identifiquei. Talvez isso tenha me inebriado e me ajudado a dormir." Não teve sonhos, ao contrário de outros que já lá dormiram depois.

"DURMO E DESDURMO"
Um deles foi a poeta Maria Lúcia Dal Farra. Entrou naquele quarto para "gozar do privilégio de dividir a cama" com Pessoa. "Mas, depois que todos se foram e fiquei só, fui tomada por um pudor danado: parecia-me que eu não tinha o direito de invadir aquela privacidade dele (não se esqueça, eu era a primeira mulher a dormir ali!), e fiquei corada, como se estivesse cometendo um pecado." Tentou reproduzir para si própria o que é que o Pessoa via quando se deitava ali, em que pensava, o que escrevia, como se mexia. Viu então, a seus pés, à esquerda da cama, um vulto.
Um dos hóspedes seguintes, valter hugo mãe, estava disponível para passar a acreditar em fantasmas depois da estadia. Nada de estranho ocorreu. Só achou a cama estreitinha. "A solteirice de Pessoa pode passar por aquela sovinice de espaço. O quarto também pequeníssimo e com duas portas e duas janelas tornava-se ainda mais uma coisa para quem não se queria mexer. A cama devia ser para noites mesmo muito aborrecidas."
No entanto, o escritor sonhou. "Um sonho esquisitíssimo: vi uma espécie de velha, uma mulher com um casacão e que tinha uma cabeça facetada. Parecia um rosto do Picasso com ângulos acentuados a dirigir-se a mim." Acordou sobressaltado. Numa parede do quarto está a frase: "Durmo e desdurmo". Não será por acaso.

CHICO EMBALA INSÓNIA
De dificuldade em adormecer também sofrem as personagens do novo filme da portuguesa Teresa Villaverde, "Cisne", que estreará no Festival de Veneza (31/8 a 10/9) e, em Portugal, a 8/9. Vera (Beatriz Batarda) é uma cantora que, onde chegue para fazer espectáculos, contrata um motorista para a acompanhar. Como sofre de insónias, escolhe quem padeça do mesmo mal. As canções que ela interpreta são de Chico Buarque.
Villaverde enviou o guião ao compositor e pediu-lhe três canções. A escrita de "Leite Derramado" meteu-se pelo meio, os anos passaram, Buarque regressou às canções e Teresa recebeu a inédita, "Nina", valsa russa que acabou por ser interpretada pelo cantor no seu recém-lançado disco, "Chico".
No longa-metragem, as canções de Chico são ouvidas pela voz da fadista Ana Moura, que participa nesta sexta, no Rio, ao festival Back to Black.


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