São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2010

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DIÁRIO DE LONDRES
O MAPA DA CULTURA


Gauguin para todos

A arte e o moralismo britânico

VAGUINALDO MARINHEIRO

Os ingleses são um povo muito atento à vida dos outros. Principalmente se o outro for uma figura pública. Nos jornais e TVs, são frequentes as discussões e cobranças sobre comportamentos públicos ou privados.
Na última semana, o jornal "The Guardian" dedicou duas páginas para discutir se estava correto um ex-jogador de futebol, que hoje é comentarista esportivo, ter ficado trabalhando num estúdio de TV enquanto sua mulher dava à luz o sétimo filho do casal.
Outros jornais e rádios vasculham a conta da mulher do ex-primeiro-ministro Tony Blair no site de leilões eBay para descobrir o que ela vende pela internet.
É curioso que nesse ambiente de supervisão e condenações morais faça enorme sucesso uma exposição de Paul Gauguin (1848-1903), que fica na Tate Modern até 16 de janeiro.
O pintor, que morreu há 107 anos, é um prato cheio para os guardiões dos bons costumes: é acusado de misoginia, pedofilia, de exploração dos "bons selvagens" da Polinésia... Ainda por cima, morreu vítima da sífilis, doença que traz o estigma da promiscuidade.
A exposição não esconde nada disso, ao contrário. Logo no começo, destaca a seguinte frase do pintor: "O que os maridos geralmente fazem? Aos domingos, vão às corridas, aos cafés, ou saem com putas. Porque os homens precisam de um pouco de distração, senão não conseguem trabalhar. Isso é apenas a natureza humana".
O cunho machista parece não incomodar as mulheres, que eram maioria entre os visitantes no dia em que a Folha foi ver a exposição. Elas parecem se deliciar com a aparente simplicidade dos autorretratos e, principalmente, com as cores das famosas telas de polinésias nuas que ele produziu no período em que passou no Taiti (na Polinésia Francesa).
"Não é justo julgar com a moral de hoje alguém que viveu há mais de cem anos. Os valores eram outros. Talvez hoje ele fosse preso por abusar dessas adolescentes. Mas essa não era a regra naquela época. Um artista não pode ser punido porque os costumes mudaram", diz Vivienne Warwick, antropóloga que passou quase dez minutos observando o quadro "Palavras do Demônio".
Na tela, uma jovem taitiana cobre os genitais quando percebe a presença de uma criatura ajoelhada atrás dela. Estaria o pintor retratando como o diabo aqueles que perseguem a beleza e a naturalidade da nudez?
O crítico Adrian Searle acredita que a má fama de Gauguin atrai atenção para sua arte. Muitos vão em busca do homem mau e encontram ternura e sofrimento.
Já Alastair Smart, crítico do "Daily Telegraph", diz que a ditadura do politicamente correto e a perseguição moral afastaram o pintor do Reino Unido por muito tempo. Essa é a primeira grande exposição de Gauguin em 50 anos.
No dia em que a Folha visitou a mostra, um grupo de cinco senhoras parou para olhar atentamente "A Perda da Virgindade". Na tela, uma moça nua está deitada no chão com uma raposa junto ao peito. Contam que a modelo para o quadro era uma amante de Gauguin, que ele abandonou grávida em Paris quando foi para o Taiti.
Ignorando questões morais, elas faziam o que fazem os reais admiradores de artes plásticas: discutiam as cores, os traços, a simbologia da raposa.

HAMLET ETERNO
Ainda é possível haver novidade num texto tantas vezes encenado como "Hamlet"? Muitos críticos dizem que, apesar da alta qualidade do texto, o que mais importa hoje em dia é o ator a representar o príncipe atormentado.
Pois o "Hamlet" de Rory Kinnear virou uma unanimidade. Deslumbrante, monumental, definidor do nosso tempo foram alguns dos adjetivos usados para qualificar a atuação do ator inglês de apenas 32 anos. A peça fica no National Theatre até janeiro.

AINDA GRÁTIS
O corte de gastos do governo britânico ainda está para ser sentido na área cultural. O Ministério da Cultura foi um dos mais afetados e haverá menos dinheiro para museus, teatros e para o cinema. Alguns apostam que até a gratuidade dos grandes museus está sob risco.
Enquanto isso não ocorre, ainda dá para ver sem pagar a nova exposição sobre Canaletto na National Gallery, incontáveis múmias e a pedra de Rosetta no Museu Britânico ou a instalação do chinês Ai Weiwei, que cobriu um hall da Tate Modern com 100 milhões de pequenas peças de porcelana que imitam sementes de girassol.


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