São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

LITERATURA

Tolstoy Festival 2010

Nossa repórter em Iásnaia Poliana

RESUMO
A propriedade onde viveu Liev Tolstói sedia congressos literários que atraem não apenas especialistas em sua vida e obra, mas também simpatizantes do modo de vida preconizado pelo escritor. A repórter da Ilustríssima faz uma crônica dos tipos presentes no congresso de 2010, que celebrou os 100 anos de morte de Tolstói, em agosto.

MARINA DARMAROS

A névoa que tomava conta de Iásnaia Poliana (em português, "Clareira Límpida"), a famosa propriedade da família Tolstói, na região administrativa de Tula, perto de Moscou, era menos uma atmosfera literária do que o reflexo da onda de calor que dominou o último verão russo. Sufocados pela fumaça, causada pelos incêndios de grandes proporções que defumaram densamente os arredores de Moscou, todos em Iásnaia Poliana queriam respirar literatura. Estava para começar a 7ª Conferência Acadêmica Internacional Liev Tolstói e a Literatura Mundial, que neste ano, entre 10 e 15 de agosto, celebrou o centenário de morte do autor de "Guerra e Paz".
Não foi apenas o interesse literário, porém, que mobilizou dezenas de viajantes até lá. Além de estudiosos de sua obra, não faltaram os indefectíveis "tolstoístas", membros da seita formada em torno do escritor. Durante sua vida, eram mais de 30 mil, e acorriam à propriedade em busca de ensinamentos, conselhos e do modo de vida preconizado pelo escritor. Hoje não passam de 500.
Os tolstoístas não comem carne, não consomem álcool ou tabaco e procuram não utilizar animais na lavoura. Numa fase mais avançada, além de plantar o próprio alimento e fabricar suas roupas e sapatos, Tolstói chegou a abdicar do sexo.
CIÊNCIA DA FELICIDADE Uma dessas figuras é Iulia Privedennaia, que foi a Iásnaia Poliana acompanhada de dois amigos, Piotr e Nadezhda. Eles fazem parte da comunidade neotolstoísta ucraniana União Poetizada do Cultivo da Teoria da Felicidade Geral da Nação. "Tolstói, em seu tempo, buscava a 'varinha verde', na qual estava guardado o segredo da felicidade", teoriza. "Nós também nos ocupamos da busca por essa varinha e da exploração da ciência da felicidade."
Adepta do esperantismo, Iulia sustenta que "o esperanto não é tanto uma língua, mas a ideia de unir pessoas de diferentes países. O que Tolstói escreveu é que não faz sentido guerrear por causa de diferentes cores de pele, línguas, crenças, e que boas pessoas podem chegar a um acordo". Isso não impediu que Iulia passasse três meses na cadeia, em 2008, sob acusação de "formação de grupo armado". Segundo ela, armas de caça foram usadas como pretexto para a prisão. Só foi libertada após a intervenção de ativistas dos direitos humanos. Julgada em julho deste ano, foi condenada a quatro anos de liberdade condicional.
O conjunto heterogêneo de especialistas, leitores, fanáticos e até mesmo dois sósias do escritor deu ao congresso literário ares de um improvável festival de rock, desses em que, por alguns dias, doidões de variada procedência se unem em torno de uma utopia universal. Nos intervalos, confraternizam em alegre cantoria e tomam banho no lago da propriedade.
INSTALAÇÕES As seis edições anteriores do congresso foram realizadas na Casa Volkonski, a mais antiga construção de Iásnaia Poliana. Lá viveu o avô de Liev Tolstói, o príncipe Nikolai Volkonski, que fez da parte central da residência uma oficina de tapeçaria, tecelagem e trabalhos com couro. Durante a vida do escritor, as instalações serviam de domicílio para a criadagem e abrigavam a lavanderia e a "tchernaia kukhnia" (a "cozinha negra", onde se preparava a comida dos empregados). A ala oriental servia como ateliê de Tatiana Lvovna, filha do escritor.
Neste ano, entretanto, os seminários foram transferidos da Casa Volkonski para um prédio administrativo ao lado do hotel onde se hospedaram os participantes. Foi uma medida de emergência: a sala de convenções do novo prédio é a única que tem ar-condicionado nas redondezas, essencial para tornar o congresso minimamente respirável em tempos de fumaça generalizada.
O diretor de Iásnaia Poliana, Vladimir Tolstói, é tataraneto do escritor e funciona como uma espécie de mestre de cerimônias. Todos dizem que é a cara do tataravô: loiro, da pele avermelhada e olhos de um azul plácido, um permanente sorriso no rosto. Ao longo dos cinco dias do congresso, Vladimir circulou nos arredores do tolsto-hotel, no tolsto-restaurante, recebendo tolsto-descendentes que vinham do mundo todo para a reunião familiar concomitante. No saguão do hotel, apresentava um painel com a tolsto-árvore genealógica. Nos momentos de descanso, era visto sentado nos tolsto-bancos da propriedade.
EXTRAVAGÂNCIA Os especialistas também contribuíram para o andamento dos trabalhos com sua dose de extravagância e festividade. A música está sempre presente, seja nas noitadas de cantoria embaladas por música soviética, na sala de reuniões do quarto andar do hotel, seja na programação oficial, como no concerto de piano na Casa Volkonski em que a pianista Elena Tarasova, 26, tocou energicamente mazurcas, valsas e baladas de Chopin (o compositor preferido de Tolstói), tendo o colo banhado de suor.
Em 2007, o japonês Koiti Itokawa cantou no congresso uma canção baseada num conto de Tolstói que seria famosa no Japão de sua infância. "O efeito foi entre o cômico e o solene, alguma coisa no meio disso", relembra o chefe do departamento de russo da Universidade de São Paulo, Bruno Gomide, que assistiu à performance de Itokawa. Gomide é autor de uma tese de doutorado sobre e recepção da literatura russa no Brasil.
Interpretações improváveis são defendidas com ardor pelos literatos presentes. Em sua palestra, o russo Evgueni Slivkin, professor na Universidade de Oklahoma (EUA), afirma que o grande erro de Tolstói em "Guerra e Paz" foi descrever Napoleão a cavalo, passando por cima dos cadáveres de seus semelhantes equinos. "O cavalo passaria sobre os cadáveres humanos, mas não sobre os de outros cavalos", assevera Slivkin. "O que Tolstói deveria ter feito, então?", alguém pergunta. "Deveria ter colocado Napoleão a pé, puxando seu cavalo", esclarece.
SEXUALIDADE Apesar da copiosa prole do escritor, um pesquisador americano pôs em dúvida sua sexualidade. Michael Katz, da Faculdade de Midbury, em Vermont, nos EUA, apresentou a conferência "As Três Mortes de Tolstói: Fato, Ficção e Filme". Trata-se de um estudo comparado do romance "A Última Estação", de Jay Parini (trad. Sonia Coutinho, ed. Record), do filme homônimo, baseado no romance, e do livro "The Death of Tolstoy", análise da recepção midiática da morte do escritor, de autoria de William Nickell, que também participou do congresso.
As constatações de Katz, porém, foram mal recebidas entre os tolstoiólogos de carteirinha. "Não é verdade, simplesmente não é verdade que Tolstói tenha sido homossexual", defendeu Donna Orwin, presidente da Sociedade Norte-Americana de Tolstói -que publica o periódico anual "Tolstoy Studies Journal"- e professora de literatura russa no departamento de línguas eslávicas da Universidade de Toronto. Em "A Última Estação", Parini interpreta as preocupações da sra. Tolstói com supostos impulsos homossexuais do marido.
"O que Parini faz é falar sobre a sexualidade de Tolstói", disse Katz numa entrevista após a apresentação. "Numa entrada de seu diário, ainda jovem, em 1851, ele diz que sempre se apaixonou por homens, que nunca se apaixonou por mulheres, e lista todos os homens pelos quais já se apaixonou." Boa parte do público ficou escandalizada, reação que o conferencista atribuiu à idade provecta dos participantes.
Não era a primeira polêmica protagonizada por Katz envolvendo autores russos: numa conferência em 1992, na Noruega, ele foi atacado por acusar Dostoiévski de antissemitismo, como ele mesmo relembra. "Minha mulher pensa que eu sou um encrenqueiro, mas eu não escolho esses assuntos para criar confusão", diz.
Não longe do fuzuê, na beira de um barranco, apenas o verde mais elevado da relva denuncia que ali está sepultado o escritor mais popular do mundo, sem lápide, sem túmulo.
"Se for possível, me enterrem sem sacerdotes e missa de réquiem", escreveu ele em seu diário, em 1895. "Mas se for do agrado para quem vier a me sepultar, então, tanto quanto possível, que o faça o mais barato e mais simples."

O conjunto heterogêneo de especialistas, leitores, fanáticos e até dois sósias do escritor deu ao congresso ares de um improvável festival de rock, em que doidões de variada procedência se unem em torno de uma utopia universal

Texto Anterior: Amor, sexo e ciúme
Próximo Texto: O mapa de Londres: Gauguin para todos
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.