São Paulo, domingo, 23 de maio de 2010

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DIÁRIO DE BUENOS AIRES
O MAPA DA CULTURA

A revolução dos livros

As peripécias de Chitarroni

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

O ESCRITOR EZEQUIEL MARTÍNEZ ESTRADA (1895-1964) DISSE UMA FRASE TERRÍVEL: "Na Argentina, primeiro inventaram o Exército, depois o povo". Tem algo de verdade.
A Revolução de Maio -que na terça-feira, 25, completa 200 anos- levou à independência do país: um grupinho de pessoas reunidas na "Plaza" (nas pinturas da época, aparecem com guarda-chuvas, em Buenos Aires sempre chove no outono), reclamando a nacionalização do comércio, e quase mais nada além disso. Em seguida, veio a criação do Exército, para sair pelas Províncias impondo a revolução.
Martínez Estrada escreveu essa frase nos anos 1930, mas agora, em maio de 2010, Buenos Aires prepara festejos que ninguém festeja, uma celebração que ninguém celebra, uma comemoração que ninguém comemora. Festejamos o bicentenário de quê? Não sabemos.
Não faltam esforços do governo, ou melhor, dos governos -o da nação, peronista de esquerda; o da cidade, liberal de direita-, para nos entusiasmar com desfiles e recitais. Nas livrarias, vemos os livros sobre os heróis pátrios (ninguém compra); na TV, programas sobre nossa origem (ninguém assiste).
E, é claro, existem as livrarias (Buenos Aires, a grande cidade latino-americana das livrarias). Os livros. Os bons livros da literatura argentina. Em cima da minha mesa, tenho três do mesmo autor, Luis Chitarroni, publicados há pouco.
São dois ensaios -"Ejercicios de Incertidumbre" [Exercícios de Incerteza] e "Mil Tazas de Té" [Mil Xícaras de Chá]- e um romance -"Peripecias del No - Diario de una Novela Inconclusa" [Peripécias do Não - Diário de um Romance Inconcluso]. Um dos romances mais radicais, vanguardistas e eruditos dos últimos tempos.
Chitarroni nasceu em Buenos Aires, em 1958. Depois de um primeiro romance ("El Carapálida"), seu silêncio durou mais de uma década. Sua erudição excessiva parecia um peso. (Na foto estampada na obra, ele é visto com alguns livros debaixo do braço.) Chitarroni sempre é visto com livros debaixo do braço. E, de repente, apareceu "Peripecias del No".
O romance gira em torno de uma pergunta clássica da literatura argentina: o que significa escrever? Ou, melhor dizendo: como escrever sobre a impossibilidade de escrever? Como dar a esse "não" um caráter de peripécia?
Chitarroni resolve isso de um jeito punk: um punk erudito, claro, mas que traz o mesmo empenho de demolir convicções, pontos de referência, lugares-comuns. Como se os temas borgianos da erudição, da tradição e da consagração tivessem passado por uma máquina trituradora.
O que aconteceu quando o romance foi lançado? Quase nada. E então o tempo passou. Não muito, mas o suficiente para que voltasse a se estabelecer a tensão entre a literatura e o mercado (o ritmo da literatura é sempre lento demais para o mercado).
Quase um ano depois, a ensaísta Beatriz Sarlo escreveu um artigo sobre o livro num suplemento cultural. Uma revista literária publicou um excelente ensaio do escritor e tradutor Matías Serra Bradford. E começou a circular pela cidade um rumor de romance cult.
O romance, ininteligível, feito de retalhos, fragmentos, restos de sentido, começou a ser mencionado por jovens escritores na seção "O que você está lendo?", do suplemento cultural do jornal "Perfil". E acho que o livro está sendo traduzido para o inglês.
É um sucesso? Claro que não: se a literatura de Chitarroni nos ensina alguma coisa, é que a literatura sempre fracassa.


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