São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2011

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CIÊNCIA

O viking de Lagoa Santa

P.W. Lund, um paleontólogo nas grutas de Minas Gerais

RESUMO
Autor de descobertas centrais na paleontologia brasileira (como o fóssil Luzia, um dos mais antigos registros da presença humana no país) e citado por Charles Darwin em "A Origem das Espécies", P.W. Lund tem imagem resgatada em livro, após ter sido retratado com acidez em romance caricatural de 1982.

MARIA GUIMARÃES

UM HOMEM PERTURBADO, quase assexuado, busca uma vida metódica -até onde as alucinações permitem- numa casa atulhada de ossadas e peles de animais.
Aos 44 anos, tem "um rosto de faces encovadas, de pele porosa como pergaminho que se desfaz, e um par de inexpressivos olhos circundados de fundas olheiras, pingando velhice".
É esse o retrato que salta para o imaginário dinamarquês, direto das páginas do romance biográfico "Na Trilha de Lagoa Santa" [trad. Per Johns, Record, 382 págs., R$ 54,90], que Henrik Stangerup publicou em 1982, sobre o conterrâneo Peter Wilhelm Lund.
Com esse personagem fresco na mente, a historiadora Birgitte Holten se espantou ao encontrar, em Minas Gerais dos anos 1980, um retrato muito diferente do naturalista que ali viveu um século antes.
Médico de formação e naturalista na alma, o Lund mineiro é um homem que se apaixonou irremediavelmente pela natureza e pelas cavernas da região, onde encontrou fósseis do povo conhecido como "homem de Lagoa Santa".
O maior símbolo de seus achados é o crânio de Luzia, um dos representantes mais antigos dos humanos das Américas (embora fósseis encontrados depois na Serra da Capivara, no Piauí, talvez sejam anteriores).
Encantou-se a ponto de se estabelecer na região, um povoado cercado por sertão bravo -e hoje parte da Grande Belo Horizonte- até morrer, aos 79 anos, em 1880. A capital mineira não havia sequer sido fundada: a inauguração só viria em 1897. Não voltar a Copenhague, claro, era sinal explícito de loucura para a família e os conterrâneos, insanidade tematizada em "Na Trilha de Lagoa Santa".
A descoberta da faceta heroica do homem que contribuiu como ninguém para o conhecimento da fauna brasileira do último milhão de anos deu à historiadora a missão de restituir o personagem no panteão dinamarquês.
Encontrou o comparsa ideal no colega Michael Sterll, na infância um menino de nariz colado às vitrines do Museu Zoológico de Copenhague, fascinado pelos ossos e fósseis encontrados por um conterrâneo numa terra e num tempo longínquos. Juntos, escreveram "P.W. Lund e as Grutas com Ossos em Lagoa Santa" [trad. Luiz Paulo Ribeiro Vaz, editora UFMG, 336 págs., R$ 90].

DOIS São dois Lunds: o de Stangerup e o de Holten e Sterll. Mas, ultrapassadas as licenças romanescas, a história é uma, e os personagens se somam.
Depois de um período de encantamento nas matas tropicais do Rio de Janeiro, Lund explora o interior. Em Minas, descobre os mistérios das cavernas do vale do rio das Velhas, apresentadas a ele pelo conterrâneo Peter Claussen, que abrigavam uma verdadeira máquina de tempo num sem-fim de ossadas recentes e fósseis.
Tratava-se de um tesouro de alto valor na Europa. "Os museus de Londres e Paris têm peças vendidas por Claussen", disse à Folha Castor Cartelle, curador de paleontologia do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas. "Era um bandidão", conclui o espanhol radicado em Belo Horizonte.
Para Lund, que recebia da família e do governo dinamarquês recursos suficientes para não se preocupar com subsistência, as cavernas eram um enigma científico irresistível. Foi isso, somado a um tanto de alívio por escapar aos invernos escandinavos, que o levou a instalar-se no pequeno vilarejo de Lagoa Santa.

DARWIN "Ele foi o primeiro paleontólogo, arqueólogo e espeleólogo das Américas, o primeiro a fazer um trabalho continuado", diz Cartelle. Naqueles meados dos anos 1830, Charles Darwin voltava à Inglaterra de sua viagem a bordo do navio Beagle e começava a ruminar suas ideias sobre a "transmutação das espécies".
A verdade consolidada era o catastrofismo de Cuvier, segundo o qual dilúvios teriam aniquilado os animais de uma época, logo substituídos por uma nova fauna.
Essa verdade foi corroída por um rato-de-espinho, na época conhecido com o nome científico Loncheres elegans. Ao examinar ossos, reconstruir esqueletos (segundo Stangerup, nem sempre com competência) e os comparar à fauna do século 19 naquela zona de transição entre cerrado e mata atlântica, Lund descobriu que o roedor que volta e meia cruzava seu caminho reaparecia como fóssil sob a camada de chão em geral revirada pela extração de salitre.
"A descoberta derrubou o catastrofismo", avalia Cartelle. Para ele, o acontecimento tem enorme importância científica e histórica.

ESQUELETOS A reviravolta que começou ali se completou em 1840, quando começaram a surgir esqueletos humanos na gruta do Sumidouro junto de fósseis de animais definitivamente extintos. Se era improvável que alguns animais tivessem escapado ao grande dilúvio, seria inadmissível imaginar seres humanos convivendo com preguiças gigantes.
Lund tentou por mais algum tempo montar o quebra-cabeça que não se encaixava no conhecimento vigente, mas em 1844 encerrou as explorações e a atividade científica. Para Cartelle, a aposentadoria precoce foi uma consequência direta do choque de não ter o chão de um arcabouço teórico. Em 1847, mandou a coleção de ossadas para a Dinamarca, para que fosse exposta e estudada por colegas inseridos na comunidade científica.
Lund não tinha ideia de que, naquele momento, outro europeu passava por sofrimento semelhante ao trilhar o mesmo caminho. Charles Darwin só viria a publicar suas conclusões contra a natureza fixa dos seres vivos em 1859.
Em meio aos indícios evolutivos listados em "A Origem das Espécies", estão as descobertas de Lagoa Santa: "[...] a maior parte dos mamíferos fósseis, escondidos em grande número nesses países [da América do Sul], se aproxima dos tipos atuais da América Meridional. O parentesco torna-se ainda mais evidente pela admirável coleção de ossadas fósseis recolhidas nas cavernas do Brasil pelos srs. Lund e Claussen".
Como se não bastasse ter disputado relíquias fósseis com o conterrâneo durante as escavações, Lund está eternamente ligado a ele na publicação mais importante em sua área. Ironia que Stangerup não deixa passar, ao retratar seu personagem indignado diante do volume impresso.
Crítico contundente dos dinamarqueses, Stangerup não perdeu a chance, por meio de um conterrâneo transplantado para os tópicos, de mostrar uma sociedade ora ignorante, ora pretensiosa, ora depravada -ou tudo ao mesmo tempo.
O Brasil já fora palco de ácida ficção de Stangerup no filme "Jorden er Flad" (a terra é plana), escrito em parceria com o amigo (até que questões femininas os separassem) Fausto Wolff (1940-2008), brasileiro exilado na Dinamarca pela ditadura militar. Jornalista e editor de "O Pasquim", Wolff também era o ator principal no filme.
Mais concentrados na figura histórica e na ciência, Holten e Sterll reuniram uma extensa documentação para reconstruir e resgatar o personagem. O resultado é um livro de índole científica, sem chegar a ser acadêmico. Uma biografia romanesca lindamente ilustrada com fotografias e pinturas da época, "P.W. Lund e as Grutas com Ossos em Lagoa Santa" é uma leitura prazerosa. E essencial, na opinião de Cartelle, que defenderia a produção de um documentário em forma de minissérie pela Rede Globo, não fosse a ausência de mulheres ou de qualquer sugestão sexual nos registros do naturalista dinamarquês.
Para o paleontólogo da PUC Minas, prestes a publicar um livro sobre a paleontologia do Estado em que "Lund aparece o tempo todo", o livro de Holten e Sterll chega num momento oportuno em que a área estudada pelo dinamarquês é assolada pelo uso humano. Lagoa Santa, que na época de Lund contava com 29 casas (incluindo a "das moças"), segundo o mapa feito por seu colaborador Peter Andreas Brandt e incluído em "P.W Lund", ainda é um agrupamento de casas à beira de uma lagoa -mas se tornou subúrbio de Belo Horizonte com 52 mil habitantes. No caminho entre o aeroporto de Confins e o centro da capital mineira, passa-se por onde nos anos 1970 foi encontrado o crânio de Luzia, batizada pelo bioantropólogo Walter Neves, da USP: a gruta da Lapa Vermelha, hoje destruída pela exploração de calcário.
A natureza da região, alterada pelo tempo e devastada pela ocupação humana, já não abriga a mesma fauna do século 19, explica o biólogo mineiro Yuri Leite, professor da Universidade Federal do Espírito Santo. Além de exclusivos de uma época, os registros ajudam a entender o que existe hoje, mais um motivo para que o especialista nos ratos-de-espinho atuais sonhe em visitar a coleção de Lund em Copenhague. Para identificar uma espécie como nova, por exemplo, muitas vezes é necessário examinar não só as descrições como o próprio material que o dinamarquês tinha diante dos olhos ao redigir seus inventários -um trabalho nunca mais repetido de forma tão exaustiva.
"Essa região, que deveria ser patrimônio mundial, é de uma fragilidade de vidro", afirma Cartelle, que traçou um roteiro científico-turístico para ajudar a preservá-la. A "Rota Lund", que se tornou um projeto do governo mineiro, começa na exposição de animais e desenhos do museu da PUC, passa por Lagoa Santa e pela gruta de Maquiné, "onde tudo começou".
O canto onde (diz-se) Lund dormia faz parte do roteiro turístico habitual da caverna, visitada há anos pelo poeta Alberto Martins, fascinado por ossos e instigado pelo esqueleto de Luzia. No poema "Lapa Vermelha, Lagoa Santa", publicado pela Companhia das Letras em 2010 no livro "Em Trânsito", ele escreve: "os ossos/varridos/pelas águas/da enxurrada//quietos/no amparo da pedra/esperaram/onze mil e quinhentos anos/até saltarem/em cacos/à luz do dia//- e agora, Luzia,/ainda te lembras/da dor?".

Depois de um tempo nas matas tropicais, Lund descobre os mistérios das cavernas, em Minas, que abrigavam uma máquina de tempo num sem-fim de ossadas recentes e fósseis

Lund não tinha ideia de que outro europeu passava por sofrimento semelhante. Darwin só publicaria suas conclusões contra a natureza fixa dos seres vivos em 1859

Se era improvável que alguns animais tivessem escapado ao grande dilúvio, seria inadmissível imaginar grupos de seres humanos convivendo com preguiças gigantes


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