São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2011

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LITERATURA

Confissões no gravador

Sexo, política e micagens de Drummond




RESUMO
Livro de entrevistas concedidas entre 1927 e 1987 compõe perfil divertido e surpreendente de Carlos Drummond de Andrade, que de figura circunspecta se mostra um personagem ferino e atuante na vida do país. Reedições de crônicas permitem estender nexos mais claros entre a prosa e a poesia do autor.

PAULO WERNECK
ilustração PAULO MONTEIRO

O CRÍTICO LITERÁRIO Antonio Candido recordou certa vez uma tipologia, criada talvez em mesa de bar, que dividia os escritores mineiros entre "contidos" e "derramados". Por esse critério, Guimarães Rosa seria um típico escritor "derramado", assim como Pedro Nava e Paulo Mendes Campos. Já Carlos Drummond de Andrade seria um "contido" convicto, ao lado de Otto Lara Resende e talvez do próprio Antonio Candido.
A brincadeira tem lá sua dose de verdade, mas não se ajusta com perfeição a uma personalidade como a de Drummond. As novas gerações, para as quais se fixou a figura algo macambúzia que, nos anos 1980, estampou tristes notas de 50 mil (cruzeiros? cruzados? cruzados novos?), há de se espantar com a franqueza com que falava de clichês da esquerda e da direita, modismos sexuais dos anos 80 ou, ferino, de uma vida literária "ridícula e triste", que "se fizesse em termos de corrida de cavalos".
Muito da faceta "derramada" do poeta pode ser conhecida em "Carlos Drummond de Andrade - Coleção Encontros" [Azougue, org. Larissa Ribeiro, 206 págs., R$ 29,90], que reúne 17 entrevistas concedidas ao longo de seis décadas, entre 1927 -um ano antes de publicar, na "Revista de Antropofagia" seu mais famoso poema, "No Meio do Caminho"- e 1987, ano de sua morte.

MOVIMENTAÇÃO A coletânea, que chega no próximo mês às livrarias, é parte de uma movimentação cultural e mercadológica que se dá neste momento em torno do poeta e que poderá promover um novo ciclo de reedições, rediscussões e releituras.
No próximo dia 31, o Instituto Moreira Salles promove o "Dia D", celebração que pretende instaurar uma versão brasileira do Bloomsday, no qual, todo 16 de junho, ritualiza em cidades do mundo inteiro o dia em que, no romance "Ulysses", de James Joyce, Leopold Bloom vagueia por Dublin.
Estão previstas exibições de filmes, saraus, leituras em escolas, centros culturais, bares e na internet (veja a programação em folha.com/ilustrissima). Aproveitando um vácuo na migração de Drummond da Record para a Companhia das Letras, a Cosac Naify relança dois livros de prosa que há décadas não eram editados fora dos volumes de obra completa: "Confissões de Minas" (1944) e "Passeios na Ilha" (1952).
A mesma editora lançou há pouco "Poesia Traduzida", produção pouco conhecida e pela primeira vez reunida em livro, com organização de Augusto Massi e Julio Castañon Guimarães, e promete para 2012 uma edição crítica dos dez primeiros livros de poesia, sob os cuidados de Castañon Guimarães.
E, por fim, a obra completa começa a ser lançada pela Companhia das Letras no ano que vem, quando Drummond como autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

JAZIDA O livro da Azougue mostra uma imagem diferente da de um homem "triste, orgulhoso, de ferro" que cantou num poema, e vem mostrar que sua ironia e seu sarcasmo corroem qualquer tentativa de solenidade.
A leitura traz a certeza de que Drummond não era exatamente "esquivo" ou "avesso a entrevistas" (elas são numerosas) como se costuma dizer: só gostava de evitar os chatos que o atormentaram vida afora e que ele não deixa de mencionar aqui e ali. E sobretudo gostava de uma boa conversa.
Há no livro balanços e recordações dos tempos do modernismo, além de saborosas observações sobre a vida literária ("Ninguém mais hoje pode avaliar o que eram, em burrice e monotonia, as letras brasileiras de 1920. Não havia nem mesmo, como agora, uma burrice variada, de um colorido intenso e perturbador. Era tudo cinzento e chato", diz ele em 1942).
Seu maior valor está em proporcionar contato direto com a personalidade galhofeira do poeta, as anedotas e as "boutades" presentes em cada página (por exemplo, que ele e o escritor Fernando Sabino gostavam de passar trotes telefônicos).
Essas e outras micagens, conhecidas pelos iniciados mas ainda mal notadas pelo público mais amplo, fazem da coletânea um livro que se lê com gosto.

MARIA JULIETA Tem sabor especial a entrevista que Drummond dá à filha Maria Julieta para o jornal "O Globo", em fevereiro de 1984. Naquele período, ele se mostra mais loquaz do que nunca com os jornalistas, depois de quase um voto de silêncio nos anos 70.
Em parte porque, "tendo passado agora para uma editora que tem uma organização empresarial muito eficiente [Record], não podia deixar de atender à necessidade de divulgação do livro", explica a Gilberto Mansur numa entrevista, aliás, concedida à revista "Status" horas depois de tomar conhecimento do suicídio do amigo da vida inteira Pedro Nava (1903-84).
Maria Julieta se vale do posto privilegiado de observadora afetiva e extrai declarações tão prosaicas quanto surpreendentes: "Os objetos sem serventia devem ser destruídos ferozmente. Se uma caneta funciona mal, arrebento-a, logo. Destruo também bonecos, vasos, camisas. Eu precisava disso para não assassinar ninguém e dar vazão aos meus impulsos agressivos. Acho legítimo."
Em outro ponto, Drummond explica sua mania de jogar papéis no lixo fazendo "'embrulhos corretos, com todas as especificações necessárias a um bom pacote', a fim de cumprir as indicações do síndico do edifício". "Estou convencido de que os papéis copulam de noite e de manhã nascem filhotes, resmas de papel datilografado, manuscrito, em branco. Se eu não rasgar, minha mesa vira um caos e já não consigo encontrar mais nada."

SEXO As entrevistas dos anos 80 são marcadas pela curiosidade dos jornalistas em torno de "O Amor Natural", coletânea de poemas eróticos que Drummond guardava na gaveta e que só seriam publicados postumamente, em 1992.
Em vários depoimentos, ele confessa receio em publicar em meio à "fase de pornografia" que o país vivia: "Eu vejo, hoje em dia, as mulheres dizerem, com a maior liberdade: 'Puxa, que tesão eu tenho por ele'; ou: 'Eu tenho um tesão formidável'. [...] Ocorre até que a pessoa fale assim: 'Ah, eu chupava o pau dele'; assim, com a maior calma: 'Se ele deixasse, eu chupava o pau'."
Em seguida, conta que foi procurado por "uma senhora" que "dizia que era jornalista, mas que estava desempregada" e que, ao pedir trabalho a Jaguar na redação do "Pasquim", foi incumbida de conseguir uma entrevista com Drummond. Telefonou para o poeta e disse, sem meias palavras: "Se for preciso, eu chupo o seu pau para você me dar uma entrevista".
"Eu disse: 'Olha, não vale a pena, eu acho isso uma bobagem, uma coisa sem maior importância, não dou mesmo entrevista'." Então pediu explicações a Ziraldo, do "Pasquim", que respondeu: "Ah, é fulana de tal, ela é muito desbocada e, naturalmente, o Jaguar disse isso mesmo para ela, sabendo que você não dava entrevista".
Em 1987, diz a Geneton Moraes Neto: "Quando eu era rapaz, tesão era uma palavra que a gente dizia na roda de chope, na conversa, mas não se considerava uma palavra de bom português. Há um fanzine, uma dessas revistas alternativas de São Paulo, que se chama 'Esperma de Baleia'".
Foi por "coisas desse gênero", explica, que guardou na gaveta os poemas eróticos de "O Amor Natural": "A noção de arte, beleza e estética fica prejudicada por esse conceito vulgar de um uso imoderado da linguagem".
Tamanha soltura não significa que, em plena abertura política e comportamental, o poeta jogasse para uma plateia ávida por liberdade sexual -na cama, na mesa de bar, nas páginas dos jornais. Ele apenas não quer se confundir com aquele "Zeitgest" ("não sou um indivíduo devasso"), ainda que sob risco de soar antiquado.
"No meu livro erótico não há o amor homossexual ou o amor transexual, bissexual", fez questão de esclarecer na entrevista à "Status". "É uma experiência que eu não tive e que hoje, parece, está muito em moda, não é? O receio da gente, na realidade, é passar como heterossexual e ser considerado como um indivíduo careta, não é?"
Ele volta ao assunto em entrevista à revista "IstoÉ", em 1984. Primeiro, esclarece que a seu ver "tudo o que parece antinatural é natural", e que se "um ser humano [...] revelou um desvio, esse desvio é natural". Mas depois diz com uma franqueza ácida:
"Acho que a imagem do homossexualismo tem todo um folclore que eu acho meio desagradável", disse. "Transexualismo, bissexualismo, cultivar a experiência como se fosse uma nova fonte de conhecimento vital -acho tudo isso muito desagradável. [...] Eu me lembro hoje de um slogan da minha mocidade, de água mineral, que acho muito bom: 'Basta de experiências, beba Caxambu.'"

ESQUERDA O receio não era só de ser percebido como "heterossexual careta". Ao criticar a esquerda, Drummond também se recusava a ser associado à direita, esquematismo que ainda hoje viceja no país.
Em 1963, época de grande acirramento ideológico no Brasil, questionado por Pedro Bloch sobre sua posição política, ele preferiu o ambíguo conforto da ironia: "A posição do escritor pode ser de pé, sentada ou deitada, conforme lhe resulte mais cômodo". Vinte anos depois, no ocaso da ditadura militar, não terá receio em contrariar unanimidades culturais.
Exemplo disso é o que declarou sobre sua posição no golpe de 1964: "Não colaborei, mas apoiei a revolução. A minha primeira impressão foi de alívio, de desafogo, porque reinava, realmente, no Rio -e dou testemunho disso- um ambiente de desordem, de bagunça, greves gerais, insultos escritos nas paredes contra tudo. Havia uma indisciplina que afetava a segurança, a vida das pessoas. E, como o presidente João Goulart me parecia incapacitado para exercer uma ação política correta, eu apoiei a revolução, não nego."
Em seguida, ressalta: "Logo depois me desencantei. Quando vi o marechal Costa e Silva dizendo aquelas coisas que dizia... Aí, eu fui servir de testemunha de defesa do jornalista Carlos Heitor Cony, meu companheiro do 'Correio da Manhã', num processo que o ministro Costa e Silva moveu contra ele. E aí eu comecei a sentir que realmente a coisa não dava, não era para o meu paladar".
Outra unanimidade do momento, a campanha da Diretas Já, é vista com pé atrás: "Eu não apoiei com entusiasmo as Diretas: em primeiro lugar, porque não sou militante político; em segundo lugar, porque eu acho que as Diretas constituiriam uma espécie de erro generoso, erro puro".
Questionado se seria de esquerda, posição quase obrigatória, Drummond responde: "Eu não divido as pessoas em pessoas da direita ou da esquerda. Nisso, eu acho, parece que há um preconceito: a esquerda tem sempre razão. Mas a esquerda, até agora, no Brasil, tem sido a parte mais errada da opinião pública, a que mais caiu em erros. Caiu em 1935, caiu em 1964, caiu quando queria que Getúlio fizesse a Constituinte, caiu em todas as partes e ainda está caindo até hoje".
Para ele, a esquerda andava "fundamentalmente errada. Agora, eu acho que a pessoa pode não ser partidária da direita, como eu não sou, eu abomino a direita, e não ser partidária da esquerda e ter um pensamento consequente, que é o pensamento socialista, que não é propriedade da esquerda".

REAVALIAÇÃO Se as entrevistas trazem à tona uma personalidade derramada, duas reedições recuperam material sólido para ajudar a reavaliar a contenção com que constrói sua obra.
Os textos de "Confissões de Minas" [336 págs., R$ 69] e "Passeios na Ilha" [346 págs., R$ 69], até agora disponíveis apenas em volumes de obra completa que os confinaram à confidencialidade dos especialistas, nasceram de sua colaboração com jornais e revistas nos anos 1930, 40 e 50, em especial o "Correio da Manhã". Os dois volumes chegam às livrarias no final deste mês.
Não se trata daquilo que, na entrevista a Maria Julieta, o poeta chama "gênero menor e engraçado, que se enquadra exclusivamente no segundo caderno dos jornais" e que ele praticava três vezes por semana em sua coluna no "Jornal do Brasil" a partir de 1969.
O trabalho no "JB" fixou no grande público a imagem de um cronista à maneira de Fernando Sabino, Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos, com quem dividiu volumes da coleção Para Gostar de Ler, da editora Ática.
Esqueça as pequenas narrativas urbanas daquela fase, como "Serás Ministro". Em "Confissões de Minas" e "Passeios na Ilha", a maioria dos textos confina com o ensaio literário, à maneira do que faz Manuel Bandeira em "Crônicas da Província do Brasil" (1937), espécie de ensaísmo confessional que abre as portas da constituição de sua obra poética.

POESIA E PROSA A conversa mais interessante aqui é a que se estabelece entre poesia e prosa. Como assinala o editor Milton Ohata no posfácio a "Confissões de Minas", os dois livros "são o correlato em prosa das inquietações que se configuram em 'Sentimento do Mundo' (1940) e se apaziguam em 'Lição de Coisas' (1962)". Da mesma forma, em "Passeios na Ilha" se adivinha a gestação de "Claro Enigma", lançado um ano antes.
Em 1941, o poeta contabiliza gaiatamente, para "A Gazeta", o conteúdo de sua "bagagem impressa": "Em 15 anos, três pequenos volumes, com um total de 104 poesias, sendo algumas de duas linhas, dão por ano 6,14 poesias".
Em entrevista à "Vamos Lêr", um ano depois, recusa a ideia de que seus livros fossem concebidos como projetos: "Nunca fiz um livro, como os romancistas o fazem, com uma máquina de escrever, um cachimbo e um caderno de notas. Quando possuo trinta, quarenta poesias, passo-as a limpo e levo a uma tipografia. Questão, apenas, de número, como vê".
A exaustiva arqueologia que escarafuncha a origem de cada texto nos volumes da Cosac Naify vem negar esse aparente espontaneísmo. Estão enfatizadas as conexões e as estruturas de um projeto intelectual que se constrói na tensão entre o "rigoroso intelectualismo" de Paul Valéry [1871-1945] e a "contingência e o acidente" que marcam os ensaios de Michel de Montaigne [1533-88], como assinala Sérgio Alcides no posfácio a "Passeios na Ilha".
As edições trazem fortunas críticas e bibliografia. Há também o utilíssimo índice remissivo, lamentável ausência na coletânea de entrevistas da Azougue.
Vê-se ali um Drummond "a passeio", como observa Alcides, que visita Ouro Preto, Sabará e Congonhas do Campo e a partir dessas viagens produz alguns de seus mais belos textos em prosa, como "Contemplação de Ouro Preto" e "Colóquio das Estátuas".
Neste texto, ele põe para conversar os profetas que Aleijadinho fez em pedra-sabão, "mineiros de há 150 anos e de agora, taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos" -como Drummond. Mas aos escritores não convém o figurino das estátuas. Prova disso é a avaliação tão bem humorada quanto precisa que faz de Guimarães Rosa, "um louco que pensa que é Guimarães Rosa".
Drummond, aqui, não poderia ser mais derramado.

"Os objetos sem serventia devem ser destruídos ferozmente. Se uma caneta funciona mal, arrebento-a logo. Destruo também bonecos, camisas", declarou o poeta

Drummond conta que foi procurado por uma senhora que se dizia jornalista. Ela disse, sem meias palavras: "Se for preciso, chupo o seu pau para você me dar entrevista"

A campanha da Diretas Já é vista com pé atrás: "Não apoiei com entusiasmo. Não sou militante e acho que as Diretas constituiriam uma espécie de erro generoso, erro puro"

"Nunca fiz um livro como os romancistas, com máquina de escrever, cachimbo e caderno de notas. Quando possuo 30, 40 poesias, passo-as a limpo e levo a uma tipografia"


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