São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Roupas em frangalhos

Porto Alegre, 24 de agosto de 1954

MARIA REGINA JACOB PILLA

ESTAVA COM FEBRE e coceiras pelo corpo. Varicela, disse o médico, dr. Enio Pilla, de sorriso aberto, vozeirão, um homem bonito que entrava pela casa escancarando portas e janelas.
Vinte e quatro de agosto é o meu aniversário. Eu ali, na cama, debaixo dos acolchoados, sem poder falar com as outras crianças. Acordada, me revirava entre os cobertores naquela manhã de inverno.
Foi quando a vizinha chamou a mãe e falou, aos gritos, que Getulio Vargas se suicidara e que havia um quebra-quebra no centro da cidade. A mãe ficou esbaforida por causa do pai (no andar inferior ao escritório dele ficava a sede do Partido Liberal, do nosso parente Raul Pilla, gente que não apreciava Getulio). Ela foi então à casa do outro vizinho pedir para usar o telefone. Voltou mais agitada, quase chorando.
O telefone do pai não respondia, e o vizinho dizia que muitos edifícios no centro de Porto Alegre estavam queimando. Se eu não estivesse ali, presa à cama, a mãe teria ido buscar o pai com seus pés e suas mãos. Então, acho que sem querer eu talvez tenha salvado a vida dela. Ninguém morreu naquele dia, mas é um pensamento bom para uma filha ter.
A manhã foi indo a passo de lesma. A mãe sentou na beirada da minha cama e olhava para o chão, a cabeça meio caída, fungando de vez em quando. Meu corpo desmilinguido estava dominado por uma bola que subia e descia. Eu não queria olhar para ela e ver lágrimas. Ver a mãe chorar dava muito medo. Ô, manhã tartarugosa. Não andava.
Barulho na fechadura. Saltamos as duas. Enrolei-me no cobertor a tempo de ver o pai entrando com a roupa toda chamuscada, parecia um carvão. A mãe foi firme na direção dele, ficaram ali abraçados.
O pai sentou na poltrona, acendeu o cigarro e teve um violento acesso de tosse. A vizinha começou a gritar no muro por notícias. A mãe correu para a janela para avisar que o pai estava em casa, todo queimado, as roupas em frangalhos. Disse que ele tinha descido três andares pelas escadas em chamas. Houve fogo na sede do PL. A vizinha veio e, com a mãe, deitou o pai na cama, limparam as feridas do rosto e colocaram uma pomada amarela, Picrato. Milagrosa. Difícil de encontrar.
Todo amarelo, todo encarvoado, o pai dormiu assim mesmo. A gente não sabia o que fazer. A mãe ligou o rádio. Havia esquecido, na afobação. Falavam de quebra-quebra na avenida Salgado Filho, na rua da Praia, jogavam os móveis e as máquinas dos escritórios pelas janelas. Era tudo muito confuso. Os jornalistas do rádio, naquela situação, pareciam estar irradiando uma partida de futebol, e não o suicídio do chefe da nação, aos gritos, sem acertar as ideias.
Alguns dias depois, o irmão do pai, o único na família que tinha um automóvel, veio à nossa casa e nos levou para ver os destroços. Eu ainda tinha muita febre. O que vimos foi demais para nossa sensibilidade ingênua. Em certos lugares os móveis ainda fumegavam. Os escombros eram altos; as cadeiras retorcidas, folhas e mais folhas de papel ardiam pelo chão. Olhando para o alto, algumas paredes estavam enegrecidas, portas haviam sido derrubadas com fúria.
Naqueles dias dos meus oito anos, o caudilho enveredou para a eternidade enfrascado num inacreditável pijama listado.


Texto Anterior: Diário de Londres: Os Bispos do Rosário
Próximo Texto: Imaginação: O lugar escuro
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.