São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2011

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MEMÓRIA

O burguês Bukowski

Entre os medalhões da literatura americana

RESUMO
Viúva de Charles Bukowski (1920-94) doa seu acervo para biblioteca na Califórnia, acontecimento comemorado com exposição em Los Angeles. Na casa onde ainda mora e que dividiu com o autor, Linda Lee mostra como o poeta das putas e dos bêbados passou seus últimos anos entre banhos de jacuzzi e cervejas importadas.

FERNANDA EZABELLA

"HANK HANK, posso entrar?"
Linda Lee Bukowski bate delicadamente na porta. Abre um pouquinho e se volta para trás. "Ele disse que não podemos entrar", diz para a reportagem da Folha, dando uma risadinha.
O pequeno escritório continua intacto, ela conta, desde que Hank, ou Charles Bukowski, morreu aos 73 anos, em 1994.
Há um cheiro no ar, roupas usadas penduradas numa bicicleta ergométrica, tintas abertas jogadas numa prateleira. Mas logo Linda abre as duas grandes janelas e o sol do fim de tarde entra, trazendo um vento gelado das águas do Pacífico.
Uma toalha cobre o Macintosh Classic, primeiro e único computador de Bukowski, usado a partir de 1991. Uma faca descansa ao lado de canetas e marcadores de texto. Também na escrivaninha de madeira, um enorme dicionário empoeirado.
"Venho aqui todas as noites, às vezes conversamos", diz Linda, que casou com o escritor em 1985 e ficou conhecida nos livros do marido como "a mulher que me deu mais dez anos de vida".
Baixinha e magra, de cabelos lisos pretos, Linda tem cerca de 65 anos. Ela introduziu vitaminas na dieta de Bukowski, cortou carne vermelha, incluiu bebidas de qualidade e o ensinou a meditar no último ano de vida, quando lutava contra a leucemia.

JACUZZI A cadeira estofada do escritório, desgastada pelos arranhões dos gatos, é a mesma de quando ainda morava num cafofo em East Hollywood e arranjou a fama de "velho louco e safado".
Foi sentado ali que escreveu os poemas marginais de "O Amor é um Cão dos Diabos" e o romance "Mulheres", sobre suas experiências com o sexo oposto e suas bebedeiras monumentais.
A cadeira está agora no segundo andar de um casarão em San Pedro, uma tranquila comunidade no porto de Los Angeles, para onde o casal se mudou em 1978. Da janela, dá para ver ao longe as montanhas de Hollywood Hills, navios cargueiros e também uma jacuzzi instalada no andar térreo.
"Hank vinha das corridas de cavalo e ia para a jacuzzi. Eu fazia uma janta, assistíamos 'Jeopardy' na TV e depois ele subia para escrever, com uma garrafa de vinho ou uma cerveja", conta Linda.
"Ele gostava das cervejas japonesas importadas", continua, ela mesma tomando uma Ichiban Shibori. Debaixo da mesa, outro detalhe: um massageador de pés elétrico.
Mas o escritório não está assim tão "intacto". Falta o rádio em cima da mesa que ele ligava todas as noites para escrever seus poemas brutos, batendo nas teclas com violência, no estilo que ele mesmo apelidou de "machine gun action", algo como "ação da metralhadora". Faltam também a taça de vinho e seus óculos.
Os objetos foram emprestados para uma mostra que começou no final de 2010, ano em que ele completaria 90 anos, chamada "Poet on the Edge". A exposição termina neste mês e também celebra a parceira de Linda Lee, dona do patrimônio Bukowski, com a Huntington Library.

MEDALHÕES Em 2006, Linda doou 2.700 itens do arquivo do escritor para a biblioteca, incluindo manuscritos corrigidos de poemas, centenas de livros, o roteiro do filme "Barfly - Condenados pelo Vício" e os rascunhos de "Misto Quente", um de seus romances mais elogiados, sobre sua juventude traumatizante, quando apanhava sistematicamente do pai e era zoado na escola. No pacote também tem cartas de amigos e fãs, algumas com fotos de mulheres nuas.
Foi um casamento estranho no mundo literário, uma vez que a coleção, avaliada em mais de US$ 1 milhão, de um dos autores mais obscuros dos EUA fará companhia a medalhões da literatura inglesa e americana num dos lugares mais burgueses da Califórnia. "Hank deve ter se revirado na cova", diz Linda, rindo. "Mas ficaria orgulhoso. Não consigo vê-lo infeliz com uma coisa tão incrível que eles fizeram."
A Huntington Library fica em San Marino, a 30 minutos do centro de Los Angeles, numa casa que perteceu a um magnata das ferrovias e colecionador de arte e livros raros. Aberto ao público nos anos 1920, o local é rodeado por um parque de 5 mil km2 (o Parque Ibirapuera tem 1,6 mil km2) que engloba cinco mil espécies de cactus num deserto artificial, árvores numa floresta tropical e carpas num lago de jardim japonês.
Na biblioteca, numa sala reservada aos tesouros da casa, o rosto de Bukowski aparece ao lado do de Jack London. Em frente, há uma vitrine dedicada a Shakespeare e outra com um dos dois volumes da Bíblia de Gutenberg. A coleção também inclui manuscritos de Chaucer, Thoreau, William Blake, Benjamin Franklin e pinturas de Gainsborough.

MÚSICA CLÁSSICA Sue Hodson, que trabalha há 30 anos na Huntington Library e é a curadora da exposição, cochicha enquanto caminha pela sala com iluminação controlada e carpete azul: "Linda Lee chorou quando viu Hank ao lado desta gente toda".
Ao chegarmos à mostra de Bukowski, música clássica, Mahler e Beethoven. E, logo na primeira vitrine, estão lá o rádio, os óculos, a taça de vinho e uma antiga máquina de escrever, usada entre 1975 e 1983, até ser trocada por um processador de texto IBM Selectric.
"Ele sabia muito sobre música clássica. Está em seus poemas, ele nunca escondeu isso. Mas também não ficava fazendo propaganda", explica Sue. "Ele tinha essa cara de durão. Você esperaria que ele gostasse de rap ou rock. Ele odiava tudo isso, não gostava nem mesmo de jazz. Amava mesmo Sibelius, Cesar Franck, Christopher Moeller, Chostakóvitch."
Neste momento, o visitante iniciado nas desventuras de Henry Chinaski, o alter ego tarado e pobretão de Bukowski, tão trágico quanto cômico, começa a procurar por algum vestígio daquela atmosfera esfumaçada de seus contos. Mas um segurança sorridente, na porta da biblioteca, nos faz lembrar que estamos num museu.
"Não queria censurar Bukowski, mas talvez eu tenha feito de alguma maneira. Não deu para colocar, por exemplo, fotos das fãs peladas ou capas das revistas para as quais ele escreveu, como a 'Hustler' e a 'Penthouse'", conta Sue. "O Huntington é frequentado por famílias. Colocamos um pequeno aviso lá fora dizendo que a exposição contém linguagem forte."

BIQUÍNI Na vitrine dedicada às cartas dos fãs, uma moça da Austrália aparece de biquíni. Em outra, vem um beijo de batom. Tem até um recado em forma de poema: "Caro Sr. Bukowski, você é o único poeta do século 20 cujos livros eu consigo ler com prazer. Eu já vi suas fotos e não acredito em uma só palavra sobre sua vida sexual."
"Ele era um ímã de mulheres. Claro, isso depois que ficou famoso, já com uns 50 anos", conta Sue.
Em outra vitrine, ao lado das revistas "The Outsider" e "High Times", mídia alternativa para qual ele passou a escrever nos anos 1960, após ser recusado pelas refinadas "Atlantic Monthly" e "Harper's", está um certificado de "licença poética", assinado por outro poeta da geração beat Allen Ginsberg. O documento não está datado, e ninguém sabe o contexto da história. Provavelmente aconteceu numa das muitas leituras de poemas que Bukowski fazia em livrarias de Los Angeles para ganhar uns trocados.
"Existia um respeito mútuo entre os dois. Mas Ginsberg achava que os beats haviam escolhido ser daquele jeito, era uma decisão consciente. Enquanto Bukowski não podia mudar, era assim."
As paredes da exposição são cobertas de desenhos feitos pelo próprio autor, como cavalos correndo e apostadores no jóquei. Um bonequinho de traços simples ao lado de uma jarra de vinho é uma espécie de assinatura sua, que se repete ao fim de cartas, recados e documentos.

CRÍTICA É verdade que a ala conservadora da Huntington Library ficou com o pé atrás com a exposição. "Algumas pessoas ficaram ofendidas, mas tudo bem, elas não precisam vir", conta Sue. "Há coisas sobre Bukowski que é bem difícil de gostar. Você nunca é neutro quando se trata dele."
Apesar do reconhecimento da instituição, Sue acredita que ainda falta uma biografia de peso, assinada por um acadêmico de primeira linha, para colocar Bukowski entre os grandes da literatura. "E isto vai acontecer", diz.
Para Thomas Gustafson, professor de literatura americana na University of Southern California (USC), o problema com Bukowski é o mesmo de vários outros escritores da Califórnia, como Chester Himes, Mary Austin e John Fante. "Eles viraram autores regionais, muito respeitados como parte dessa literatura californiana, mas não fora dela. Talvez se eles fossem de Nova York ou de Chicago, a história seria diferente", diz Gustafson.
A poesia simples, sem artifícios, estrutura e, muitas vezes, sem rima, também não ajuda na imagem acadêmica. "Kerouac, com um livro só, influenciou muito mais gente. Mas os estudantes gostam de Bukowski porque ele fala contra a hipocrisia, contra os valores burgueses. Sua poesia é fácil de ler, é autêntica, não é bonitinha, nem graciosa."

"Ao chegarmos à mostra, música clássica, Mahler e Beethoven. E, logo na primeira vitrine, estão lá o rádio, os óculos, a taça de vinho e uma antiga máquina de escrever"


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