São Paulo, domingo, 27 de março de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

MEMÓRIA

Conversa ao pé do ar

Clarões de Décio de Almeida Prado

RESUMO
O crítico de arte Alberto Tassinari rememora seus encontros com o crítico e historiador de teatro Décio de Almeida Prado (1917-2000), seu primo em segundo grau, quatro décadas mais velho. A partir de conversas sobre política, filosofia, cinema, crítica, futebol e reminiscências familiares, Tassinari esboça um perfil afetivo.

ALBERTO TASSINARI

Durante muito tempo tive longas conversas com Décio de Almeida Prado. Chegava a sua casa por volta das quatro da tarde, e não foram poucas as vezes em que de lá saí à meia-noite, depois de um lanche, o jantar e mais um pequeno lanche que preparava seu sono. Porém, não conversava apenas com o intelectual Décio de Almeida Prado, mas também com o tio Décio, como eu o chamava, pois era primo-irmão de minha mãe.
Entretanto, a familiaridade de seu nome, a de um tio, nome que eu ouvia em casa, mas nome de alguém que eu ainda mal conhecia, só se cristalizou para mim por volta de meus 18 anos. Eu andava meio a procurar coisas, estudante de engenharia, cineasta amador, poeta às escondidas. Enquanto eu ziguezagueava, entre os 18 e para lá dos 45, ele, entre os 55 e para lá dos 80, parecia-me, porém, sempre o mesmo.
Não que o fosse. Ninguém o é. Mas assim me parecia. E agora mais ainda, já fora do tempo, nas múltiplas imagens nas quais me surge como se num filme imóvel, embora todo movimento, sentado em sua poltrona preferida, onde já não está e para sempre estará, e na qual a figura do tio e a do intelectual como que se equilibram entre seus dois braços.

CRUZAMENTO De seus tantos interlocutores, e foram mesmo tantos, me coube estar no cruzamento singular que une o familiar e o histórico. O que aumentava consideravelmente o espectro de nossa prosa. Por esses atalhos que só as boas conversas possuem, podíamos, entre o mundo da família e o universo histórico, vaguear à vontade, pois famílias também têm histórias, ao passo que a idade que nos separava, quase 40 anos, tornava, por sua experiência, o sentimento histórico palpável para mim e a história como que pronta para ressurgir à minha frente.
Era fácil, assim, passar da importância da revolução de 1930 na história do Brasil à história de um seu tio, e meu tio-avô, antigetulista -este teve que se apressar para ir embora de uma cerimônia em que conheceu Getúlio Vargas, pois, infelizmente, simpatizara além da conta com a pessoa do político.
Como nos poemas memorialísticos de Drummond, tios e tias, primos e primas, pais e filhos, nada faltava.
E eram tantos os elos de família, assim como eram tantos nossos assuntos, que me pego agora meio confuso, sem a certeza de quem me contou o episódio familiar acima. Terá sido minha mãe que também gostava dos casos familiares?

CLARÕES Mas, ao passar da política para a metafísica, de um caso para outro caso, de um tio para outro seu tio, e também a outro meu tio-avô, o caso que segue, é quase certo, me foi contado por ele. Nos clarões cada vez mais fortes reluzindo nas noites da fazenda de nosso tio e tio-avô parecia haver uma indagação.
Questionado sobre o que se passava, respondeu que tentava, por meio de grandes fogueiras, comunicar-se com o eterno, conforme lera ou ouvira em certo lugar. Os clarões, porém, um dia cessaram. Indagado sobre o que descobrira do além, a resposta foi sucinta e absolutamente científica: as fogueiras não estavam surtindo nenhum efeito e, assim sendo, adotou outro método. Quando morresse descobriria.
E nesse ponto a nossa conversa entraria pelo peculiar pragmatismo do ramo familiar de nosso tio e tio-avô ou, prosseguindo ainda na trilha da mesma investigação, pelas antigas provas da existência de Deus e da imortalidade da alma. Pois, entre tantas coisas, Décio de Almeida Prado era um excelente professor de filosofia.

INTERRUPÇÕES Mas outros assuntos nos chamavam. O cinema mudo tem uma história interminável. Embora pudesse ser a qualquer momento passível de enveredar pela história também interminável dos grandes musicais. Os assuntos eram muitos e o tempo é sempre pouco. E de repente me dou conta que as interrupções eram inevitáveis e que de um outro modo talvez tenhamos tido uma única e longa conversa ao longo de 30 anos, com pausas de seis meses, um ano, até mesmo dois anos. E a razão dessa unidade, parece-me, é que o tempo em que conversávamos era sempre o tempo presente.
Traço seu, mas também de sua geração, mas que ele levou a certa plenitude, passado, presente e futuro não digladiavam em seus pensamentos e sentimentos. Seguiam uma espécie de justa proporção conforme o tempo passava. O avolumar-se do passado sobre o futuro seguia o bom passo em que o passado nunca era saudoso, mas fresco, vivo. E o futuro, por sua vez, nunca ansioso, mas a boa espera que os atos no seu devido tempo preencheriam.
Desse presente sempre mutável e também sempre o mesmo eu me nutria, para sanar um pouco minhas melancolias, um tanto faminto. Mas guiado por seu humor e serenidade, também me sentia serenado pela reciprocidade que o bom diálogo carrega. Diálogo, assim, que, com a sabedoria de quem muito já se cultivou, com naturalidade conduzia. Se os assuntos eram muitos, se o tempo nunca me parecia suficiente, é que, mais do que um tema ou outro, o que me cativava e ainda cativa em nossas conversas era sua arte de conversar.
Ainda hoje, em momentos de certa aflição, por uma mistura de memória e imaginação, ainda hoje posso visitar nossa longa conversa e nela um tanto me revigorar. É que sua arte de conversar vinha, creio, de sua arte de conviver, de um acordo consigo mesmo que não existe sem um acordar-se com os outros, sem uma aguda simpatia pelo outro, e a qual, parece-me, é o contraponto certeiro de um bem-estar com o tempo.

EMPATIA Nas nossas conversas, fizesse sol, fizesse chuva, o tempo que narrava as coisas era sempre o bom tempo. Não se dramatizava o drama. Havia calma, a distância certa. Sua empatia pelas coisas, seres e lugares só se exercia graças ao direito simétrico de distanciar-se e diferir do outro. Uma coisa não pode mesmo ir sem a outra.
Nos seus textos de crítico e historiador de teatro, e também em suas crônicas, o simpatizar e o diferir estão por toda parte. Aspectos tão firmes nele que podiam transformar coisas aparentemente banais em momentos estéticos. Ou, através do já estético, e da arte, também fazer o movimento inverso em direção ao real.
É assim que, numa consideração sobre métodos críticos, sua resposta opta pela primazia da arte como reveladora dos próprios caminhos para abordá-la. Assim sendo, onde encontrar uma realidade explicadora da arte se cabe antes à arte mostrar a realidade de modo mais pleno? Há algo de profundamente estético nesse privilégio do objeto em relação ao método, embora nada haja de estetizante.
É que sua confiança no tema que aborda como crítico, cronista ou historiador, não lhe exige mais do que pesquisas que rondam e dialogam com o assunto. E o cultivado dom de sua escrita. Não lhe exige o caminho de todos os caminhos, pois cada coisa como que se explica e fornece o trajeto de abordá-la. O que, certamente, não é algo propício às ciências. Mas a crítica e a história da arte não são ciências. Ou, ainda, não necessitam ser. Depende de quem as pratica.

MÉTODO Não só o estilo, mas também o método, pode ser o homem. E, no caso, o homem é sereno, humorado, sutil, experiente, nada diverso das qualidades dos grandes críticos propostas por Hume. O que, sem dúvida, dificulta minha tarefa, que eu julgava fácil, de, por meio de nossa prosa quase interminável, descrevê-lo e homenageá-lo por um rápido e certeiro esboço.
Mas como fazer para que ele salte na página de jornal assim como ele fazia com as pessoas das quais me falava? Qual o gesto revelador? E quais palavras o captariam? Numa segunda consideração sobre método, essa não escrita, mas sobre a qual um dia conversamos, e diante da pluralidade dos que estão à disposição, concluiu: na dúvida, o melhor é fazer ao próprio jeito.
Truísmo profundo. E que poucos conquistam. Assim aqui o tento. E imagino que ele veria certa graça em homenageá-lo não no décimo, mas no décimo primeiro ano de seu falecimento. São onze, no fim das contas, os personagens de um escrete de futebol. Esporte que ele amou e assistiu por toda a vida, e um tanto, creio, à maneira de um drama.
A mais antiga de suas lembranças, entre as que me contou, quando ainda era um menino de sete anos, foi a da campanha do Paulistano à Europa em 1925. Dez jogos, nove vitórias e uma única derrota. O Paulistano, "avant la lettre", começou a gloriosa campanha vingando nossa derrota na final da copa de 1998, vencendo a França por 7 x 2 no dia 15 de março. Os heróis do dia: Nestor, Clodoaldo, Barthô , Sérgio, Nondas, Abate, Filô, Mário, Friedenreich, Arakem e Netinho.

Talvez tenhamos tido uma única e longa conversa ao longo de 30 anos, com pausas de seis meses, um ano, até mesmo dois anos

Por esses atalhos que só as boas conversas possuem, podíamos, entre o mundo da família e o universo histórico, vaguear à vontade


Texto Anterior: Ciências humanas: Fetiches conceituais
Próximo Texto: Sociologia: Metrópole em dois atos
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.