São Paulo, domingo, 27 de março de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

A xícara

ALBERTO MARTINS

Eu tinha 20 anos e uma namorada loira que passava perfeitamente por alemã. Nosso trem foi o último a entrar na cidade, com as janelas cobertas por causa das pedras atiradas em protesto. Na cidade índia e mestiça, com todas as saídas bloqueadas, acabávamos reencontrando as mesmas caras nos bares, nas esquinas e nas agências de viagem que ofereciam maneiras mirabolantes de tirar os estrangeiros de La Paz, antes de o conflito estourar. Foi numa delas que encontrei o jovem universitário da Califórnia.
Estava aflito porque já comprara toda a cocaína que queria e agora não achava meios de escapar dali. Tinha medo de acabar cheirando todo o pó, se o bloqueio continuasse por mais uns dias.
Declinamos o convite para lhe fazer companhia e fomos assistir a "Ifigênia", de Cacoyannis, num cineclube no centro da cidade. Na saída do cinema, entramos num café que parecia transplantado diretamente da Viena do século 19: lustres requintados e decadentes, armários repletos de cristais e graciosas cadeiras de ferro em torno de mesinhas com tampos de mármore, onde nos aboletamos. A duas mesas de distância, estava sentado um homem magro e pálido. Fazia frio ali dentro, e o homem portava uma espécie de mantô grosso, usava chapéu e luvas. Depois de nos observar por algum tempo, pediu permissão para se aproximar.
Não gravei nenhuma das palavras que trocamos -o que é uma pena, pois gostaria de reproduzi-las. Lembro que, durante a conversa, voltava-se com frequência para minha namorada. A certa altura, perguntou num tom afetado qual era seu sobrenome e quis saber a que ramo de atividades a família dela se dedicava no Brasil. Quando deu a entender que só vivia naquele país, que desprezava, porque era ajudado por amigos europeus, reparei que suas mãos enluvadas moviam-se nervosamente em torno da xícara. Pouco depois minha namorada teve dois ou três calafrios e começou a tremer debaixo do casaco.
Pensei nesse encontro com alguma frequência nos últimos anos e só há pouco, ao tomar conhecimento de certas notícias e juntar os cacos da conversa cifrada e do quê de incompreensível que havia naquele café austríaco, formei uma convicção sobre o que realmente se passou aquela tarde: nosso interlocutor fora nazista do Reich, e um nazista não tem outro modo de sobreviver -seja no exílio, seja em sua pátria- senão tornando-se vampiro.


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