São Paulo, domingo, 27 de março de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Maria Antonia, ainda e sempre

Osasco, 1968

Arquivo Pessoal
Muro do pátio do Grêmio da Maria Antonia, no final da década de CB

ADÉLIA BEZERRA DE MENESES

Recordar é colocar de novo no coração. Urge falar da Maria Antonia -a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, sediada na rua deste nome, antes da sua mudança forçada, em 1968, para a Cidade Universitária- quando a universidade tinha escala humana, quando a não compartimentação geográfica entre os cursos metaforizava a convivência intelectual; quando Letras estava tão perto das Ciências Sociais quanto da Psicologia e da Filosofia, e todos se acotovelavam nas escadas estreitas ao descer para o Grêmio -inclusive o pessoal da Economia (rua Dr. Vila Nova) e da Arquitetura (rua Maranhão).
Num dos muros do pátio do Grêmio, constantemente sob nossos olhos, estava escrito a carvão: "Função da Universidade / denunciar as injustiças". Interiorizada, essa pichação se imprimiu a ferro e fogo nos corações de muitos de nós. Nesses anos tensos e intensos em torno do golpe militar de 64 -o que, no meu percurso pessoal, correspondeu à graduação em letras e ao início da pós-graduação, tendo a sorte infinita de ser orientada por Antonio Candido- a universidade servia de catalisador de toda uma fermentação cultural e ideológica, em que "conscientização" e "participação" eram as palavras de ordem.
A Alfabetização de Adultos - Método Paulo Freire era uma das possibilidades de agir. Organizamos em conjunto com estudantes da PUC um curso de alfabetização em um núcleo operário de Osasco, Vila Iolanda, que durou de 66 a 68, até ser disperso pelo DOPS. Passaríamos a viver, em mais de um sentido, "um tempo partido, de homens partidos".
A leitura não era uma técnica neutra: vinculava-se o acesso ao mundo da escrita à tomada de consciência. O essencial não era ensinar o alfabeto, mas conscientizar; possibilitar à pessoa que desvendasse o seu estatuto de "criador" e de sujeito histórico, apto a ler o mundo. (Belissimamente aludido na canção -bem posterior- de Chico César: "a cigana analfabeta lendo a mão do Paulo Freire").
Inicialmente levantamos o universo vocabular que serviria de base para as "palavras geradoras" = palavras significativas para o grupo e que, decompostas em fonemas, propiciariam o surgimento de novas palavras.
Assim, em vez de infantilizarmos os trabalhadores, alguns já madurões, com cartilhas em que "O bebê brinca com a bola", ou "O vovô viu a uva", apresentava-se algo que lhes fosse significativo.
Uma das primeiras palavras-geradoras foi "tijolo". Depois do debate inicial sobre condições de trabalho, leis trabalhistas etc., procedeu-se ao desmembramento fonético do vocábulo, com a formação das "famílias fonêmicas", que gerariam novas palavras, descobertas como que num jogo. Tratava-se da "ficha da descoberta":

ta te ti to tu
ja je ji jo ju
la le li lo lu

E houve um brilho de olhos quando o Seu Sebastião descobriu a palavra "luta"... E depois de esgotados os jogos que poderiam ser feitos no interior desse quadro, e todas as palavras que se poderiam inventar com aquele elenco de sílabas (lata, jiló, tutu, lajota, etc.), alguém começava a extrapolar: da família da primeira sílaba (ta-te-ti-to-tu), retinha-se o te, do qual se gerava a palavra "terra" (que suscitava reforma agrária, evidentemente); na segunda família, vibrava o "já" das urgências inadiáveis; finalmente, na família da terceira sílaba denunciava-se o "la", de latifúndio.
E poderia ser de outro jeito? O entusiasmo, a sinceridade e a generosidade imantados de elã juvenil sobrepujavam o que pudesse haver de panfletário naquilo tudo. Vivíamos, sim, uma idade utópica.
Estávamos em Osasco, mas era como se lá fosse um campus avançado da USP - ou melhor, da Maria Antonia.


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