São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2010

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ARQUITETURA

Crítica sem lugar

O amargo desencanto da arquitetura brasileira

RESUMO
A crítica de arquitetura no Brasil se dá entre interrupções e impasses, ligados às relações com o mercado, à história política do país e ao sucesso internacional da arquitetura moderna brasileira. Desenvolvimento econômico e grandes projetos em andamento trazem desafios tanto para críticos como para arquitetos brasileiros.

GUILHERME WISNIK

NOS DOIS VOLUMES DE "Textos Fundamentais sobre História da Arquitetura Moderna Brasileira" [ed. Romano Guerra, 316 e 332 págs., R$ 24 cada], Abilio Guerra reuniu artigos e ensaios publicados ao longo de quase 20 anos, entre 1983 e 2002, período que o organizador caracteriza como o momento de constituição inicial de um campo crítico na área de arquitetura no país.
Guerra é professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie (São Paulo) e criador do site Vitruvius, que se configurou como a grande referência para a circulação de informações e o debate de ideias entre arquitetos e afins. Nos anos 2000, o site tornou-se o espaço em que essa discussão se ampliou e prosseguiu de maneira polifônica.
Nos textos, acompanhamos o percurso de formação de uma importante massa crítica, conduzido por professores universitários como Sophia Telles, Otília Arantes, Carlos Alberto Martins e Carlos Eduardo Comas. Pois, exceção feita à produção de figuras luminares como Mário Pedrosa e Flávio Motta entre os anos 50 e 70, a reflexão teórica mais quente, até então, partiu em geral dos próprios arquitetos, tais como Lucio Costa, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi. Nota-se, assim, que o grande desafio para pensadoras como Sophia Telles e Otília Arantes, foi interpretar o percurso de "formação" da modernidade arquitetônica no Brasil a partir de um arsenal crítico já bem desenvolvido em outras áreas, como a literatura e as artes plásticas, realizando-se as devidas traduções.
Com perspectivas em grande medida distintas, ambas lançam luzes sobre esse ponto, interpretando as particularidades no processo de aclimatação da modernidade europeia ao solo extenso e informe da ex-colônia. Nesse sentido, é também relevante a produção de críticos do Rio de Janeiro que, nas páginas da revista "Gávea", estenderam uma ponte entre as teorias da arte e da arquitetura nos anos 90, e que estão, inexplicavelmente, quase ausentes da compilação feita por Guerra.

ESPECIALIZAÇÃO Data do início dos anos 80 a criação dos primeiros cursos de doutorado em arquitetura no país, assim como o ressurgimento das revistas especializadas, reanimando o debate que se encontrava paralisado desde o golpe militar (1964). Compreensivelmente, os temas que mais aparecem nesses textos são a tentativa de reflexão sobre um pós-modernismo que parecia não encontrar lugar no país, a reavaliação do papel demiúrgico (auto) atribuído à nossa arquitetura moderna e a desconstrução da trama historiográfica criada para interpretar essa arquitetura -que, tradicionalizando o passado colonial, situava a produção moderna como uma continuação natural daquela "tradição", destituída das afetações ornamentais trazidas com a missão francesa, no século 19.
Soma-se a esses temas, ainda, a contribuição de novos aparatos teóricos capazes de ler os nossos edifícios modernos a partir de uma ótica formal, que acrescentava informações ao discurso dominante, fosse ele de ênfase política (a forma como decorrência de uma opção técnica), fosse ele mitologizante (a forma como mimese da natureza tropical).

AMBIENTE RESTRITO Contudo, aos olhos de hoje, muitas vezes incomoda o tom excessivamente específico de algumas dessas discussões, que pareciam feitas para circular em um ambiente restrito e, de certa forma, intelectualmente estreito. Esse, me parece, é o ponto mais sensível da questão, que envolve tanto a reflexão sobre o lugar problemático da crítica de arquitetura no Brasil, quanto o diagnóstico da perda de relevância da arquitetura na nossa sociedade. O que é chocante, se levarmos em conta a relevância mundial da nossa arquitetura, ao menos até a inauguração de Brasília (1960). As duas questões pedem atenção.
De acordo com a bem-humorada imagem do holandês Rem Koolhaas, a atividade do arquiteto é uma mistura venenosa e esquizofrênica entre onipotência e impotência. Pois, ao mesmo tempo que lida com símbolos de grande alcance midiático, escala e orçamentos de vulto, volta e meia vê suas intenções serem subvertidas por idiossincrasias de gosto dos clientes, constrangimentos de legislação e verbas apertadas, terminando por lamentar a eterna injustiça que se abate sobre o seu trabalho.
No Brasil pós-Brasília, o componente de impotência evidentemente tem vencido e provocado tanto um certo desencanto amargo, quanto uma reação indignada, que acaba por descolar o discurso dos arquitetos (reativamente utópico) da realidade, isto é, do mercado. É preciso somar a isso as enormes pressões ideológicas envolvidas na atividade de arquitetura, tais como: trabalhar para o Estado ou para a clientela privada? Entender a sua ação na sociedade a partir de uma matriz crítico-simbólica (artística) ou técnico-social (reparadora de carências)?

SINAL INVERTIDO No Brasil da ditadura militar, o discurso desenvolvimentista dos anos JK (1956-61) teve o seu sinal invertido e essa divisão ideológica se tornou agônica e praticamente implodiu as bases do discurso e da prática arquitetônica no país. Como percebeu Luis Espallargas Gimenez em texto publicado na coletânea, talvez todo esse imenso debate pudesse ter sido adiantado se a arquitetura tivesse feito parte do movimento tropicalista.
Quer dizer: não foi possível aos arquitetos, por uma série de razões, realizar uma autocrítica do seu discurso baseada em uma leitura negativa do Brasil. O que demonstra que o componente artístico da arquitetura acaba muitas vezes abafado pela inerente positividade que a profissão tem de encarnar na sociedade.
Como declarou recentemente em um debate público o artista plástico Nuno Ramos, os textos críticos sobre arte, no país, foram até pouco tempo o "lugar" por excelência no qual a obra de fato existia como significação. Isto é, diante de um sistema de circulação de valores simbólicos e econômicos ainda incipiente, foi no espaço virtual do texto que os trabalhos se apoiaram, até que um sistema de mercado, exposições e financiamentos mais sólido pudesse suportá-los de forma mais orgânica.
Com a arquitetura, no entanto, acontece uma situação inversa: exposta desde muito antes a um mercado mais voraz e bafejada pelo sucesso internacional precoce, que a levou a uma espécie de autoindulgência crítica, a arquitetura brasileira apareceu para parte da geração de intelectuais presente no livro muito mais como objeto de ataque e desmistificação do que de diálogo empático.

APAZIGUAMENTO Ao mesmo tempo, para os arquitetos continuou vigorando a prática apaziguadora de não criticar os colegas e de considerar que a reflexão sobre arquitetura só pode partir dos próprios arquitetos. Sintomaticamente, as bienais de arquitetura são, até hoje, organizadas por um órgão de classe: o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), e as curiosas salas dos homenageados se parecem com estandes de vendas. Qual é o lugar da crítica nesse contexto? Como voltar a situar a arquitetura e o urbanismo como fatos culturais relevantes?
O primeiro livro monográfico de peso sobre um arquiteto brasileiro, publicado no país, data apenas de 1993 (o livro sobre a obra de Lina Bo Bardi, publicado pelo Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi). De lá para cá, um número substantivo de estudos e publicações tem surgido, assim como o intercâmbio com universidades e arquitetos estrangeiros. O prêmio Pritzker atribuído em 2006 a Paulo Mendes da Rocha é um sinal claro da vitalidade atual da produção brasileira, lastreada em uma visão essencialmente ética da cidade.
Arquitetura não é perfumaria, mas, ao contrário, uma prática de "esclarecimento" coletivo, através da qual a sociedade figura, de modo concatenado, o seu futuro. Num país que descuida tanto desses valores uma vez tidos como básicos -como tem ficado claro, por exemplo, na maneira obscura como surgem as propostas de grandes obras para os Jogos Olímpicos, a Copa do Mundo e a orla portuária do Rio de Janeiro-, um possível desenvolvimento econômico pode se realizar, na verdade, como ato predatório e excludente.
O que será do prometido "espetáculo do crescimento" sem uma visão democrática e estratégica da sua infraestrutura física, que possa driblar as "leis" da especulação imobiliária e do "city-marketing" na direção de interesses mais amplos, generosos e, em última análise, inteligentes?


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