São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2010

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DIÁRIO DE LISBOA
O MAPA DA CULTURA

O fado é uma droga dura

Lula Pena canta como um poeta

ISABEL COUTINHO

ELA CHAMA-SE LULA. Lula Pena. Descobriu o fado quando saiu de Portugal. Uma noite, em Barcelona (Espanha), num bar onde costumava actuar, resolveu experimentar cantar o "Barco Negro". Lembram-se da canção imortalizada por Amália Rodrigues (1920-99) no filme "Os Amantes do Tejo" (1955, do diretor francês Henri Verneuil) -"De manhã, que medo, que me achasses feia!/ Acordei, tremendo, deitada n'areia/ Mas logo os teus olhos disseram que não..."-, com letra de David Mourão-Ferreira?
Lula cantou nessa noite e ficou com a breca no final da música. Na entrevista ao jornal português "Público", em que contou esta história, disse que ficou com um sorriso que não conseguia desfazer. Assustou-se. Nessa noite, pensou que o fado é uma droga dura.
Quando todos andavam à procura da nova Amália, Lula cantava fado nas ruas e uma vez quis conhecer a diva. Tinha umas coisas para lhe perguntar. Marcaram um encontro. Chegou o dia.
Era uma quarta-feira, Lula lembra-se bem. Um dos músicos que devia ir com ela a esse encontro telefonou-lhe de manhã, ela acordou e achou que estava atrasada. Ele disse-lhe: "Amália morreu esta manhã" [6 de outubro de 1999].
No dia 12 de fevereiro de 2009, Caetano Veloso escreveu no seu blogue "Obra em Progresso": "A cantora que mais me interessou nas últimas semanas foi Lula Pena. Uma portuguesa de voz grave e violão eletrificado que canta como um poeta". Colocava um link para Lula a cantar no YouTube a "Rua do Capelão", que é uma das 13 músicas do seu primeiro disco, "Phados", que ela gravou em Bruxelas, em 1998.
Passaram-se 12 anos e só agora a portuguesa volta a editar um disco: "Troubadour" (Mbari) . Ela diz que "a respiração não é a mesma" ou que "a cabeça já não é a mesma", e que o que os dois discos têm em comum é a sua voz (grave e invulgar), a guitarra acústica e a necessidade da palavra. Dividiu o seu disco em sete "actos" (um deles termina assim: "Meu amor?" "Sim, diz" "Já disse".)
Os seus concertos são raros, num deles o seu coração batia tanto que ela não conseguia cantar. Nesse momento, só teve uma solução. Colocou o microfone no peito e todos ouviram as suas batidas. Fez-se silêncio e ela finalmente cantou.
Se querem ter uma sensação intrigante, ouçam Lula Pena. Ficarão arrepiados. Por "Troubadour" passam o fado, a bossa nova, a morna, o tango, a "chanson" e o flamenco.
Quando, há meses, Caetano esteve em Lisboa a fazer uma conferência na Casa Fernando Pessoa com (o poeta) Antonio Cicero houve um serão, como aquele que Amália fez para Vinicius de Moraes no final dos anos 60, em que Lula cantou para os dois brasileiros. As suas canções estão cheias de citações e alusões: "Partido Alto", de Chico Buarque, mas também "Luna Tucumana", de Atahualpa Yupanqui, e "A Noite do Meu Bem", de Dolores Duran.
Ela está no Myspace (myspace.com/lulapena). Procurem-na.

FAZES-ME FALTA
Daqui, desta Lisboa de onde vos escrevo, o escritor Alexandre O'Neill, que morreu no dia 21 de agosto de 1986, faz-nos muita falta. É um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos. Em Portugal, divulgou a obra de Vinicius e quando lançou a sua obra completa, em 1982, teve a seu lado João Cabral de Melo Neto.
Durante muitos anos a crítica esqueceu-o, os jornais não falavam dele e temo que aí, pelo Brasil, a memória dele também se tenha perdido.
Por cá, as coisas recompuseram-se. A Assírio & Alvim tem reeditado a sua obra e, na Dom Quixote, saiu "Alexandre O'Neill - Uma Biografia Literária", de Maria Antónia Oliveira.
O poeta sabia que um dia andaria alguém a espiolhar-lhe a vida e escreveu o poema: "Diz-lhe que estás ocupado/ a entrevistar-te a ti mesmo/ mesmo porque se não/ o pões desde já porta/ fora estás quilhado vai/ espiolhar-te apalpar-te/ meter-te o dedo no cu/ querer saber a quantas/ quais mulheres ofereceste/ teu recortado coração (pelo picotado)/ em quantos quais sonetos meteste/ o quatorze e quantas quecas/ te saíram pela ejaculatra/ e ainda que livros levarias/ para uma ilha deserta [...]".
Escreveu fados para Amália e vivia do dinheiro que lhe dava a publicidade. É dele o famoso "slogan" que ficou para a história e faz parte dos dicionários de provérbios portugueses: "Há mar e mar, há ir e voltar".
Inventou a frase numa noite. Tranquilamente em sua casa, O'Neill sentou-se em frente da sua velha máquina de escrever e tac, tac, tac, saiu-lhe essa frase extraordinária. Um homem que escreve "Digo-te adeus/ e como um adolescente/ tropeço de ternura/ por ti" não é igual aos outros. Não pode ser. Se forem para a tal ilha deserta, por favor não se esqueçam do homem que tropeçava de ternura por nós.

COQUELUCHE
Este verão há um bar que é a coqueluche das esplanadas de Lisboa, o Bar Terraço Clube Ferroviário, na rua de Santa Apolónia, 59. Uma vista fenomenal sobre o rio Tejo e, se tiverem sorte, até pode ser que lá esteja a tocar, ao vivo, a Roda de Choro de Lisboa.
Para matar saudades do Brasil em Portugal.


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