São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2010

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Odisseia

Canto 11

SOBRE O TEXTO
Obra fundadora da literatura do Ocidente, a "Odisseia" narra a viagem do herói Ulisses (ou Odisseu) a sua terra natal, Ítaca, após a Guerra de Troia. O episódio abaixo, conhecido como Nékuia, descreve a descida de Ulisses ao mundo dos mortos. Tradução inédita.

HOMERO
tradução TRAJANO VIEIRA

Quando nos deparamos com a nave e o mar,
tratamos de entregá-la às ôndulas brilhantes;
no mastro infixo, alçamos os velames, pécoras
a bordo e, acabrunhados, nós também subimos,
embora pranteando lágrimas copiosas.
À proa azul-cianuro, Circe, belas-tranças,
canora deusa apavorante, enfuna as velas
com ressopro favônio, companheiro habílimo.
Dispostas as enxárcias, todos nos sentamos,
vento e piloto nos capitaneando. Pan-
diurnas velas pandas, singramos o mar.
Sol posto, as rotas todas turvam e aos confins
chegamos do profundocaudaloso Oceano,
logradouro da cidadela dos cimérios,
que névoa e nuvem toldam. Hélio-Sol jamais
observa-os rutilando raios ofuscantes,
nem quando escala o céu-urânico estelar,
nem quando deixa o urânio-céu e torna à terra,
mas a noite funesta encobre os homens míseros.
Fundeamos o navio e a rês desembarcamos
naquele ponto, e fomos dar na região
referida por Circe, ao longo da corrente
talássia. Perimede e Euríloco sustêm
as vítimas. Então saquei da coxa o gládio
e um fosso abri de um côvado de lado. A todos
os defuntos libei: ao lácteo-mel apus
o vinho deleitoso e água. Salpiquei
farinha branca de cevada. Então à testa
exangue dos defuntos muito supliquei:
a mais perfeita vaca estéril, volto à Ítaca,
imolaria, ardendo em pira dons. Tirésias,
só ele, a dádiva pan-negra de um carneiro
receberia, o mais lustroso do tropel.
Depois de suplicar à estirpe cadavérica,
degolei no fossado a dupla de carneiros:
o sangue negrinebuloso escorre. Do Érebo,
afluem as ânimas-psiquês dos perecidos,
moças, rapazes, velhos multianiquilados,
esposas joviais de coração neomísero,
exército ferido pelo pique brônzeo,
mortos no prélio cujas armas pingam sangue,
turba caótica ao redor da fossa, uivando
ávida. E a angústia esverdeada me deteve.
Os animais jazentes pelo bronze cruel,
mandei que os nautas os coureassem e queimassem,
rogando aos deuses, Hades invencível, tétrica
Perséfone. Puxei da coxa a espada rútila
para impedir que aparições exangues, antes
que eu inquirisse o áugure, se aproximassem
do sangue. Vi primeiro a ânima de Elpenor,
sócio insepulto ainda sob a terra larga,
pois que o soma, seu corpo morto, nós deixáramos
sem pranto e sem sepulcro no solar de Circe,
premidos por diverso compadecimento.
Contrista o coração, quando o mirei às lágrimas,
e com palavras-asas lhe falei: "Elpenor,
como alcançaste o fosco tenebroso, a pé,
antes de mim que vim em nave negrejante?"
E dele, singultoso, ouvi: "Divino herói
Laertíade, plurimaquinoso, o azar
de um demônio aziago me golpeou e o vinho
a rodo. Adormecido no solar de Circe,
esqueci-me de usar a longa escada. Do alto,
despenquei de cabeça para baixo e a nuca
rompeu das vértebras, e a ânima, nos ínferos,
desceu. Suplico em nome de quem sonhas ver,
de teu pai, que se desdobrou por ti na infância,
de tua mulher, do filho que deixaste só,
sei que daqui, onde Hades mora, aportarás,
em nave bem-torneada, na ínsula Eéia,
onde te rogo, chefe, que me rememores!
Não me deixes ilácrimo e insepulto, ao léu,
quando te fores (numes não te punam por
mim!), mas com minhas armas todas me incendeia
e na praia do oceano cinza erige o túmulo
de um infeliz: vindouros saibam que vivi!
Faze isso por teu nauta e espeta sobre a tumba
o remo que, em vivendo, usei ladeando amigos."
Falou assim e respondi: "Eu cumprirei
à risca o que me pedes, infeliz." Tal era
o câmbio estígio de palavras; sobre o sangue
mantinha o gládio, e a imagem de meu companheiro
arengava muitíssimo do lado oposto.


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