São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Patriarca em flor

Rio de Janeiro, 1989

ELVIA BEZERRA

"TAL AMOR, TAL VIDA." Com esse verso de Murilo Mendes eu definiria o advogado e bibliófilo Plínio Doyle, que durante anos, em sua casa no Rio de Janeiro, se cercou de amantes da boa conversa nas reuniões que ficariam conhecidas como "sabadoyles".
Começaram num sábado, 25 de dezembro de 1964, quando Carlos Drummond de Andrade precisou fazer uma consulta na biblioteca do amigo. A visita foi tão agradável que no sábado seguinte lá estava novamente o poeta.
A ele foram-se juntando outros escritores, seduzidos pelos mesmos atrativos: a conversa, os livros e o carisma do anfitrião. Despretensiosas e informais, eram então apenas as "reuniões na casa do Plínio", até que, dez anos depois, o poeta Raul Bopp cunhou o neologismo "sabadoyle".
No período nobre desses encontros, se juntavam Drummond, o fundador involuntário e o mais fiel integrante, Pedro Nava, Joaquim Inojosa, Afonso Arinos, Homero Senna, entre outros. Na sala com as mais de mil corujas que formavam a coleção de Plínio Doyle, reinava um espírito singularíssimo: conversava-se sobre qualquer assunto, em grupos de três ou quatro pessoas que se aproximavam livremente.
A graça estava na "ausência completa de pedantismo", observou Wilson Martins, sabadoyliano bissexto. As vaidades individuais se encolhiam por falta de plateia, e meu amigo Karim Aïnouz, que não frequentou o salão nem decorava o nome, apreendeu a liberdade que reinava ali: perguntava se eu ia ao "Doylalá".
Fosse na rua Barão de Jaguaripe, ou depois, na avenida Epitácio Pessoa, em Ipanema, onde Plínio Doyle morou, chegava-se por volta das 3h da tarde para "a pura, simples, fantasista, descompromissada conversa entre amigos e desconhecidos ou mal-conhecidos" -registrou Drummond. Curioso é que, mesmo com a espontaneidade característica, o anfitrião jamais dispensou o ritual: às 5h, depois de cafezinho com biscoitos, um dos presentes lia um texto relativo a aniversário de uma obra, pessoa ou data.
Assídua desde 1993 até o seu fim, em 2000, tive direito até a ganhar medalha, cunhada em 1989 para registrar o período em que o "sabadoyle" projetou a Barão de Jaguaripe nas letras. A frase que consta do verso reproduz o título da ata com que Drummond sacramentou os 20 anos das reuniões.
Não conheci o poeta de "A Rosa do Povo", morto em 1987, mas não me faltaram experiências ricas e algumas divertidas. Uma dessas foi quando, certa vez, esteve presente Edméia San Tiago Dantas, viúva do chanceler San Tiago Dantas. Sentada ao meu lado, ela esperava, solene, o início de uma programação. Como a conversa se desenrolasse na mais absoluta naturalidade sobre os assuntos mais diversos, a senhora inclinou-se para o meu lado e sussurrou, menos curiosa do que impaciente: "Que horas começa esse negócio aqui?", ao que sussurrei de volta: "Esse negócio aqui já está começado".
É que Edméia frequentava um outro "sabadoyle", cuja existência pouca gente conhece: o "sabadoyle" matinal, grupo nada literário que se reunia antes do almoço e durante o qual os "happy few", dos quais fiz parte algumas vezes, bebiam uísque enquanto o anfitrião tomava seu campari: "guaraná" e "groselha", aliás, oferecia ele em versão bem-humorada.
Num ou noutro, ele imprimia uma sobriedade alegre, dinâmica. E com que prazer dava pistas a um pesquisador de literatura! Quantas vezes admirei em silêncio a autoridade fraterna daquele homem de 90 anos. Em nada a bengala que usava lhe agregava fragilidade. Pelo contrário, compunha-lhe a figura de patriarca, "patriarca em flor", na expressão feliz e, para mim, definitiva, de Antônio Carlos Villaça.
Muitos tentaram defini-lo: Plínio, o Jovem, disse um; Plínio, o Bom, chamou outro; Abade da confraria, ensaiou alguém; Pedro Nava nomeou-o "Bâtonnier"; e houve até mesmo quem o chamasse de Babalorixá.
Seja lá com que título, neste 2010 faz dez anos que ele se foi.


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