São Paulo, Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 1999
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OPINIÃO
Os possessos

JOÃO SAYAD
O PFL não é partido liberal ou neoliberal. Reúne políticos que defendem interesses locais ou regionais sem postura dogmática contra o Estado, a favor do mercado ou de qualquer outro dogma neoliberal.
O PMDB nasceu como oposição ao governo militar. Deu certo, cresceu e se descaracterizou. Não é diferente do PFL, a não ser por ainda ter alguns antigos líderes da oposição nos seus quadros.
O PSDB começou como dissidência do PMDB, reunindo em partido separado políticos de origem universitária, mais comprometidos com problemas nacionais do que com questões locais, regionais ou profissionais. Ganhou as eleições em 1994 e se transformou no defensor da doutrina neoliberal de redução do tamanho do Estado e incentivo à globalização financeira. Cresce desde que assumiu o poder e tende a se transformar em novo PMDB.
O PPB é a direita na oposição. É formalmente neoliberal mas, quando no governo, tem sido mais pragmático e intervencionista do que o próprio PMDB.
O PT é o único partido em que doutrina e pensamento político sobre o futuro do país não são apenas pretextos para reunir políticos em torno de uma sigla.
Em compensação, o debate doutrinário interno é tão conflituoso e intenso, que ameaça a própria atuação e sobrevivência do partido.
A vida política nacional é portanto marcada pela fragmentação -partidos representam apenas micro interesses locais, regionais ou profissionais.
O presidente reconhece o diagnóstico e brinca que enquanto Clinton enfrenta oposição organizada, o governo federal é apoiado por maioria desorganizada.
Então, quem foi que apoiou estes quatro anos de juros altos e câmbio sobrevalorizado com corte de gastos, desemprego e privatização?
A indústria brasileira perdeu. Empresários podem ter se adaptado, transformando indústrias em importadoras ou vendendo empresas para empresas internacionais. Mas a indústria perdeu, cortou postos de trabalho, desmanchou-se.
Da perda dos operários nem é preciso falar. O movimento sindical enfraqueceu com desemprego e salários mais baixos, os pelegos renasceram das cinzas.
Os funcionários públicos diminuíram em número, foram promovidos a bodes expiatórios e perderam salários. Os funcionários das estatais, se eram contra a privatização, foram derrotados, além de terem perdido em salário real e número de empregos.
A agricultura perdeu duas vezes -vendeu mais barato, com o câmbio sobrevalorizado e pagou juros mais altos para financiar a própria sobrevalorização.
Será que os bancos ganharam? Pode ser. Mas hoje, temos apenas três grandes bancos nacionais. Agora, o sistema bancário nacional é basicamente estrangeiro à exceção dos três e de alguns pequenos bancos de investimento.
Quem ganhou?
Muitas pessoas ganharam -empresários e não empresas, pessoas e não grupos ou classes: os que compraram dólares baratos e se transformaram em investidores estrangeiros residentes no Brasil, nos meses mais quentes ou menos quentes, dependendo do gosto de cada um.
Talvez os compradores das empresas estatais que conseguiram financiamento e herdaram as únicas empresas brasileiras que realmente existem em termos de possuírem mercado, tecnologia, organização e estratégia.
Todos os setores econômicos do país perderam. Trabalhadores perderam.
Mesmo assim, o governo conseguiu maioria para aprovar reformas constitucionais que pareciam impossíveis de serem aprovadas: exigem dois terços dos votos, dupla votação nas duas casas parlamentares. Aprovamos a privatização da Petrobrás, o fim da estabilidade do funcionário público, a redução dos benefícios dos aposentados e a reeleição.
Como explicar a vida política nacional que aprova conjunto de reformas e política econômica que vai contra os próprios interesses?
Economistas diriam que o fim da inflação deu esse imenso capital político ao governo para aprovar o que quisesse e orientar o país no sentido em que bem entendesse.
Mas o fim da inflação seria explicação se pudéssemos identificar que grupos teriam sido beneficiados -onde está o grupo ou setor que ganhou?
Será que foi a possibilidade de consumir alguns importados por preços excepcionalmente baixos? Será que foi um populismo consumista que deu força ao governo? Mas o medo do desemprego e a redução de salários não deveriam pelo menos contrabalançar o apoio dos que consumiam importados mais baratos?
Existem duas respostas possíveis.
A primeira é que no Brasil, o racional está deslocado do real. Fomos entorpecidos por idéias caídas do céu.
Somos como os possessos do Dostoievsky que jogam bombas, incendeiam, matam e se suicidam por idéias de livros. Experimentamos durante quatro anos a sobrevalorização cambial, sem razão concreta alguma. Poderemos experimentar outra barbaridade qualquer, como o "currency board".
A segunda resposta é para tranquilizá-los: tudo tem uma razão, este é o melhor dos mundos possíveis. Eu é que não entendo nada de política.

E-mail: jsayad@ibm.net


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