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Imigrantes do prazer
Kin Cheung - 5.set.03/Reuters
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Anúncios de serviços sexuais em Hong Kong; ao lado, cartaz feito por prostitutas atendidas pela ONG Empower, na Tailândia
Autora de estudo sobre trabalhadores do mercado global do sexo ataca ONGs
e diz que prostitutas
não querem
ser salvas
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ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Leis duras penalizando
clientes da prostituição
e operações para fechar bordéis clandestinos são alguns dos esforços para combater a escravidão sexual; mas a maior parte
dos trabalhadores estrangeiros
resgatados não é escrava e não
quer ser salva, defende uma socióloga que há cerca de 15 anos
trabalha com ONGs de prevenção da Aids e de organização
comunitária pelo mundo.
Para Laura Agustín, autora
de "Sex at the Margins - Migration, Labour Markets and the
Rescue Industry" [Sexo nas
Margens - Migração, Mercados
de Trabalho e a Indústria do
Resgate, Zed Books, 224 págs.,
US$ 31,95, R$ 73], o Primeiro
Mundo impõe a vitimização e a
criminalização das prostitutas
migrantes, pessoas que, em geral, se enquadram melhor no
perfil de migrantes ilegais do
que de escravos.
"É culpa do feminismo. Nem
todas as feministas pensam assim, mas há o "feminismo fundamentalista", para o qual a
prostituição é sempre uma violência, portanto não pode ser
tolerada." Acrescenta que a
prevalência da ideia de que o
sexo deve ser exclusivamente
associado ao amor é um empecilho ao tratamento legal adequado para o vasto mercado do
sexo -do "nu artístico" ao sexo
por telefone e internet.
Agustín conta que, embora
não tenham originalmente a
intenção de trabalhar na indústria do sexo, as prostitutas migrantes em geral fazem uma
opção consciente -já que as alternativas de trabalho equivalem a não ganhar o suficiente
para ajudar suas famílias.
FOLHA - A sra. diz que transita pelas "zonas cinzentas" entre as ideias
de prostituição como violência e de
sexo como opção de trabalho. Por
que não defende simplesmente a
formalização da prostituição?
LAURA AGUSTÍN - Porque trabalho com migrantes. Muitas não
se veem como prostitutas ou
"trabalhadoras do sexo". Dizem: "Eu trabalho à noite",
"trabalho num bar", elas têm
vergonha. Mas escolheram esse
trabalho, não foram forçadas.
FOLHA - Que casos de regulamentação dos trabalhadores do sexo podem ser considerados exemplares?
AGUSTÍN - Quanto à questão do
preconceito contra imigrantes,
é sempre um problema; se você
já tem a documentação e o direito de circular no país, a situação é outra. Na Alemanha e
na Holanda, há as regiões legalizadas, mas ainda são experimentais, portanto cheias de
problemas. Em alguns casos, as
pessoas simplesmente evitam a
legalidade para não pagar impostos.
Na Espanha, onde há muitas
mulheres e muitos travestis
brasileiros, não há lei proibindo
a prostituição; por outro lado
não há regulamentação.
FOLHA - Brasileiras que viajam sozinhas à Europa frequentemente reclamam de preconceito...
AGUSTÍN - É verdade, o estereótipo existe, embora não haja
hoje mais prostitutas brasileiras do que ucranianas, por
exemplo. O fato é que as brasileiras chegaram antes, nos anos
1980. Nos últimos cinco ou dez
anos, chegam pessoas de outros
países do Leste Europeu, estonianas loiras e altas. Mas diga
às brasileiras que seria pior se
fossem dominicanas. Como a
migração da República Dominicana estabeleceu-se desde o
início dos anos 80, há uma séria
associação da nacionalidade
com a prostituição.
FOLHA - Em artigo da semana passada, a sra. critica a estatística, recém-publicada pelo governo dos
EUA, segundo a qual apenas 10%
dos casos de tráfico de trabalhadores relatados no país [1.229 incidentes de janeiro de 2007 a outubro de
2008, 83% no mercado de sexo] foram comprovados como "tráfico". A
maioria deveria ser considerada
contrabando de pessoas, migração
ilegal, em vez de tráfico?
AGUSTÍN - Não sei. Há o terrível
tráfico, mas há o contrabando.
O que impressiona é que, se tão
poucos casos foram provados,
algo está errado: o número
maior é um arbítrio? Ou as pessoas envolvidas não quiseram
denunciar esse "tráfico"?
FOLHA - Isso nos leva ao caso das
prostitutas na Tailândia, que defenderam o direito de não serem "resgatadas".
AGUSTÍN - Acontece que não há
alternativa. Elas mesmas dizem que, das opções que existem, preferem a prostituição.
Poderíamos criticar a política
social da Tailândia ou de Mianmar, mas isso não adiantaria.
FOLHA - Parece o mesmo que dizer
que, se o tráfico de drogas tem clientes dispostos a comprar, movimenta
a economia e dá opções a crianças
de favela, deve-se admitir que continue assim.
AGUSTÍN - Sim, é a mesma coisa.
O que se enfatiza em nossa sociedade é a proibição. Não há
prova de que a proibição funcione, de que vai afastar as pessoas do sexo ou da droga. Meu
interesse é descobrir alternativas. Tenho investigado essa indústria do resgate, que diz: "Vamos salvá-lo, queira ou não".
Você tira mulheres de um lugar
onde ganhavam dinheiro,
prende num "abrigo" e lhes dá
um sermão. É loucura.
FOLHA - A sra. acusa o Primeiro
Mundo de exportar a falsa premissa
de que o sexo tem de ser acompanhado sempre de amor, o que não é
necessariamente verdade em outras culturas...
AGUSTÍN - Sim, é uma premissa
falsa.
FOLHA - Mas isso não é uma contradição com o fato de o Primeiro
Mundo protestante ser muito mais
liberal do que países católicos, como
os da América Latina, que fornecem
a mão-de-obra para o sexo?
AGUSTÍN - Não acho que a religião seja o fator mais importante nesse caso. O que há é que alguns impõem valores aos outros. Em países como Noruega
e Suécia, as pessoas acreditam
que estão no topo do mundo; fizeram leis que criminalizam o
cliente [da prostituição], justamente por causa da utopia de
igualdade defendida pelas feministas fundamentalistas.
Eles se adiantam à opinião
pública, pois nem todos pensam assim, e a lei não muda a
cultura de um dia para o outro.
No entanto os legisladores fizeram isso. Essas pessoas pensam
em termos de preto ou branco,
sem zonas cinzentas.
Não há provas de que proibir
explicitamente a prostituição
nos EUA -as duas exceções
são Nevada e Rhode Island-
tenha ajudado em alguma coisa. Não diminuiu a demanda,
mas as pessoas são presas por
isso.
O que é necessário é uma
mudança cultural. Por isso
meu foco passou a ser não os
migrantes que vendem sexo,
mas as pessoas que os ajudam.
Elas fazem o que é "certo" de
acordo com suas próprias identidades. Querem ajudar os desafortunados, mas acabaram
impondo seus valores.
FOLHA - O novo presidente dos
EUA, Barack Obama, é um símbolo
dessa "mudança cultural"?
AGUSTÍN - Ele fez uma coisa significativa: acabou com a "mordaça global", norma segundo a
qual, se quisesse receber financiamento para combater a Aids,
uma ONG teria de se declarar
contra a prostituição, entre outros requisitos. No caso do tráfico de pessoas, não espero
muita diferença. Quanto aos direitos para trabalhadores do sexo, isso é legislação estadual,
portanto nada vai mudar.
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