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Trabalho de luto
Relatório da OIT sobre a América Latina e anúncios de demissões nos EUA, na Europa e no Japão apontam para o derretimento dos níveis de emprego em escala global
RICARDO ANTUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Começam a ficar mais
claros os contornos e
as primeiras consequências da crise que
vem liquefazendo o
sistema do capital em escala
global. O Fórum de Davos (Suíça) "começa com executivos
em pânico" (Dinheiro, 28/1).
Lá, onde estão reunidos representantes das "classes verdadeiramente perigosas", os
executivos globais contabilizam o que já é incontável e
mergulham numa crise de proporções alarmantes.
Enquanto isso, no outro canto do mundo, em Belém, o Fórum Social Mundial ganha uma
impulsão extra.
Isso porque ele vem, desde
2001, denunciando a lógica
destrutiva dominante. Se ainda
não foi capaz de oferecer um
projeto societal alternativo e
global para o mundo, contrário
aos imperativos do capital,
muitos de seus partícipes sabem que o capitalismo é o responsável pela (des)sociabilidade vigente e suas mazelas.
Esse sistema poderá até ser
ainda mais longevo, mas será
sempre empurrado no tranco.
Ora definhando o Estado ao
mínimo (no que tange à sua dimensão pública), ora tendo
surtos intervencionistas, como
este que se abateu no governo
de George W. Bush e de seus
epígonos.
Mas a crise vive um ciclo prolongado, datado do início dos
anos 1970.
Começou destroçando os
países do Terceiro Mundo. Um
a um, Brasil, Argentina, México, Uruguai, Colômbia, para ficarmos somente em alguns
exemplos da América Latina,
foram mergulhados no estancamento e na recessão, o que
fez desmoronar o pouco que
esses países construíram no capítulo dos direitos sociais do
trabalho.
Mas isso foi só o começo: depois foi a vez, no fim dos anos
1980, de levar à bancarrota o
chamado "socialismo real"
(União Soviética e o restante
do Leste Europeu). Menos do
que expressão do "fim do socialismo", esse fato antecipava
uma nova etapa da crise do
próprio capital.
No olho do furacão
No presente, depois do seu
epicentro ter passado pelos
principais países capitalistas
(Japão, Alemanha, Inglaterra e
França), chegou ao coração do
sistema: os EUA estão agora no
olho do furacão.
E, com isso, uma vez mais se
acentua o caráter pendular do
trabalho.
Nos países que vivenciaram
traços do Estado de Bem-Estar
Social, especialmente na Europa social-democrática, o dilema se colocou (ainda que sem
tocar na raiz do problema) entre trabalhar menos e viver as
benesses do ócio, curtindo o
"tempo livre" (vale a indagação:
será mesmo tempo livre, sem
aspas?).
Trabalhar menos, para todos
viverem uma vida melhor, tornou-se consigna forte.
Mas na América Latina (e o
mesmo vale para a Ásia e a África) a dilemática tem uma profundidade ainda maior.
Neste verdadeiro continente
do labor, o pêndulo é ainda
mais ingrato em seus dois polos
opostos: ele oscila entre trabalhar ou não trabalhar; entre encontrar labor ou soçobrar no
desemprego.
Mais precisamente, entre sobreviver ou experimentar a
barbárie, pois o Estado de Bem-Estar Social sempre andou
muito longe daqui.
Migalhas
No meio do caminho, uma
massa monumental de assalariados vivenciando uma precarização estrutural do trabalho
em escala continental. Crianças, negros, índios, homens e
mulheres trabalhando no fio da
navalha.
Conforme recordou Mike
Davis, em seu "Planeta Favela"
[ed. Boitempo], "não é raro encontrar [na América Central]
empregadas domésticas de sete
ou oito anos com jornadas semanais de 90 horas e um dia de
folga por mês" ("Child Domestics", Domésticas Infantis, relatório da Human Rights Watch
de 10/6/2004).
Com a crise, o quadro se
agrava: no recentíssimo "Panorama Laboral para América Latina e Caribe - 2008" (Organização Internacional do Trabalho, 27/1), o cenário social apresentado é de tal gravidade que
beira a devastação.
Se o desemprego diminuiu
nos últimos cinco anos, o relatório da OIT antecipa que, "devido à crise, até 2,4 milhões de
pessoas poderão entrar nas filas do desemprego regional em
2009", somando-se aos quase
16 milhões já desempregados
(sem falar no "desemprego
oculto", nem sempre captado
pelas estatísticas oficiais).
Ou seja, o que se conquistou
em migalhas, a crise derreteu
no último trimestre de 2008.
Se, no centro do sistema,
têm-se as maiores taxas de desemprego das últimas décadas,
no continente latino-americano esse quadro se agudiza.
Na maioria dos países houve
retração salarial; as mulheres
trabalhadoras têm sido mais
afetadas, com taxa de desemprego 1,6 vez maior que os homens, e o desemprego juvenil,
em 2008, em nove países, foi
2,2 vezes maior do que a taxa de
desemprego total. A informalidade, que era exceção no passado, torna-se a regra.
Flexibilidade
No Brasil, a "marolinha" já
desempregou milhares de trabalhadores na indústria, nos
serviços e na agroindústria
(atingindo até o etanol do trabalho semiescravo).
O país, que o governo Lula
afirmou ter uma economia estável e refratária à crise, está
vendo a cada dia a corrosão dos
níveis de emprego. O empresariado pressiona mais uma vez
para aumentar a "flexibilidade"
da legislação trabalhista, com a
falácia de que assim se preservam empregos.
Nos EUA, na Inglaterra, na
Espanha e na Argentina, entre
tantos outros exemplos, flexibilizou-se muito. Fica a indagação: por que então o desemprego vem se ampliando tanto nesses países?
Para concluir, vale adicionar
mais uma contradição vital em
que o mundo mergulhou, quando o olhar vai além do cenário
televisivo oferecido pelo contagiante "big brother" global:
quando se reduzem as taxas de
emprego, aumentam os níveis
de degradação e barbárie em
amplitude global.
Se, em contrapartida, o mundo produtivo retomar os níveis
altos de crescimento, esquentando a produção e seu modo
de vida fundado na superfluidade e no desperdício, aquecerá ainda mais o universo, o que
é mais um passo certo para uma
outra tragédia já bastante
anunciada.
RICARDO ANTUNES é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas
e autor de "Adeus ao Trabalho?" (Cortez).
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