São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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+Memória

Sem Updike, América encolhe


Um dos grandes escritores americanos, autor da tetralogia do Coelho morreu na última terça

BOYD TONKIN

Alguns anos atrás, quando os EUA começaram a celebrar os heróis que haviam vencido a Segunda Guerra e que estavam desaparecendo rapidamente, comentaristas começaram a falar da "grande geração" que realizara tanto e que não poderia ser substituída.
Aquilo que era dito das forças militares também se aplicava às batalhas menos ruidosas da ficção.
No entreguerras, antes e depois de 1930, nasceu um grupo de romancistas que mapearia a história pública e a secreta dos EUA com habilidade, verve e tenacidade que têm poucos paralelos na literatura moderna.
Desse grupo incomparável de pares, Saul Bellow e Norman Mailer já deixaram o palco.
Agora John Updike, mais jovem, mas não menos dotado, também se foi. Nos últimos 18 meses, Updike tinha lançado não apenas um romance novo ("As Viúvas de Eastwick", sequência de um de seus trabalhos mais amados), mas também um volume tipicamente eclético de ensaios críticos.
A chamada "grande geração" de romancistas aderia a uma ética de trabalho rigorosa que deixava no chinelo os displicentes literatos europeus.
Ao mesmo tempo em que voltavam um olhar severo sobre as deficiências de sua própria sociedade, Updike e seus contemporâneos trabalhavam em estilo muito americano.
Nunca desperdiçavam seu tempo, trabalhavam com prazer e davam conta do recado.
Durante os próximos dias e semanas, muitos críticos escreverão sobre Updike e o descreverão como o flagelo da classe média suburbana americana.
Não há dúvida de que sua prosa imaculada, delicadamente modulada, penetrou fundo nas hipocrisias sexuais, nos antolhos intelectuais, na domesticidade sufocante desde a era de Dwight Eisenhower até (quase) a de Barack Obama.
Mas esse profissional incansável, descendente de colonos holandeses, conhecia e sentia o mundo de ambição e insegurança que dissecou com tanta maestria. A magnífica tetralogia sobre o Coelho ["Coelho Cai", "Coelho Corre", "Coelho Cresce" e "Coelho em Crise"], por exemplo, vê seus personagens e seus lugares de dentro para fora.
É claro que a sátira e a crítica eram parte do objetivo de Updike, mas sua história interna da vida americana no pós-guerra também ecoa com o puro e simples prazer da observação precisa. Ele sempre está semiapaixonado pelas vítimas de sua pena penetrante.
A versatilidade e a virtuosidade parecem nunca tê-lo abandonado. Como sabem até pessoas que nunca o leram, ele escrevia com confiança acrobática sobre sexo -mas escrevia igualmente bem sobre arte, negócios, moda e interiores.
E, numa fase posterior de sua carreira, optou por abrir suas asas mais longe. Em romances como "Brazil" e "Terrorista", nós o vimos lançar-se em investidas ousadas sobre ambientes e temas que dificilmente poderiam estar mais distantes do adultério e da raiva contida atrás da cerca de mourões brancos da residência suburbana americana.
Quando romancistas produzem copiosamente, o veredicto da posteridade pode ser injustamente rigoroso. Os palpiteiros tendem a apontar para as obras-primas incontestáveis (e os romances sobre o Coelho vão perdurar enquanto perdurar a cultura americana) e desprezar a massa das outras obras, vendo-a como nada mais que lastro, digno de um escritor peso médio.
Mas, como a nação de cujos costumes e ideais mutantes ele traçou a crônica tão poderosa, Updike se alimentava da pura e simples produtividade. A plenitude e a generosidade definiram seu talento, assim como definem o melhor "self" de seu país. Sem Updike, a própria América parece ter encolhido um pouco.


Todos os livros citados acima foram publicados, no Brasil pela Companhia das Letras, que deverá lançar, em 2011, "As Viúvas de Eastwick". A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Clara Allain.


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