São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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+Debate

Que macaquice!

Quantidade de neurônios no cérebro reforça a proximidade entre seres humanos e outros primatas -ideia pela qual Darwin foi hostilizado

SUZANA HERCULANO-HOUZEL
COLUNISTA DA FOLHA

Mesmo sendo apenas vagamente relacionada a uma eventual cura para doenças ou a um tratamento novo (coisa que 5 entre 7 jornalistas quiseram saber), a descoberta mais recente de nosso laboratório ganhou reportagens -favoráveis- na TV e em vários jornais no país: "Um primata nada especial", "Cérebro humano está no padrão dos primatas", "Cientistas brasileiros derrubam mitos sobre o cérebro".
A bióloga em mim fica feliz com uma coincidência: nosso artigo -mostrando que o cérebro humano, devido ao seu número de neurônios e outras células, é apenas um cérebro grande de primata nada "maior do que o esperado"- foi publicado no "Journal of Comparative Neurology" [Jornal de Neurologia Comparativa] justamente no ano do bicentenário do nascimento de Charles Darwin. Lembro de Darwin especialmente ao pensar na recepção que nossa descoberta vem obtendo do público, da mídia e de nossos pares.
Há 150 anos, ele ousou dizer que temos um ancestral em comum com os demais primatas vivos, como primos têm avós em comum -e foi recebido com escárnio e indignação por boa parte do público e dos jornais, cujas charges o mostravam em um corpo de macaco. Sobretudo para os representantes masculinos e brancos da espécie que dominava meio mundo, sermos primos (ainda que distantes) de macacos e gorilas não parecia uma honra à altura da "espécie mais inteligente da Terra", supostamente criada "à imagem de Deus", e não de outros primatas.

Sem resistência
Por isso, quando em 2007 comecei a apresentar em palestras para o público leigo nossos trabalhos comparando cérebros humanos e de outros primatas e a argumentar que o cérebro humano é apenas um cérebro grande de primata -com o tamanho e número esperado de neurônios para um primata de 60 a 70 kg-, eu esperava alguma resistência do público, se não indignação. Mas, para minha grata surpresa (que inicialmente beirava a decepção, confesso), o público em geral sorria e concordava com a cabeça quando eu anunciava nossa conclusão: se o cérebro humano é feito segundo as regras que valem para os demais primatas, Darwin era portanto também um primata -assim como todos nós.
O que 150 anos de evolução, história, educação científica e debates não fazem: hoje posso chamar meu público de primata e ainda receber sua aprovação bem-humorada. Desde Darwin, muitos biólogos, psicólogos e neurocientistas se empenham em encontrar maneiras de identificar características distintivas do cérebro humano que justificassem nossa "superioridade". Muitos sossegaram quando, nos anos 1950, Henry Jerison calculou o coeficiente de encefalização e demonstrou que, comparados aos demais mamíferos, "nosso cérebro é de cinco a sete vezes maior do que o esperado".
Considere que o tamanho do cérebro cresce junto com o tamanho do corpo na evolução e olhe para gorilas e orangotangos: donos de corpos até três vezes maiores que o humano, o cérebro deles é apenas um terço do nosso. Para o corpo relativamente diminuto que temos, nosso cérebro deveria ser menor que o dos gorilas. Mas não é. Assunto encerrado: somos especiais.

Homens primatas
Mas a ideia de que seríamos especiais não se encaixava com o que eu aprendera na biologia: por que as regras da evolução se aplicariam a todos os outros animais, menos a nós? Após cinco anos de pesquisas determinando e comparando números de neurônios entre espécies de mamíferos, chegamos aos humanos, graças a uma colaboração com a equipe do Banco de Cérebros da USP.
Com 86 bilhões de neurônios, não 100 bilhões, e sendo eles metade das células do cérebro, e não um décimo, o cérebro humano é construído da maneira esperada para um cérebro de primata em um corpo de 70 kg -não maior do que o esperado nem com mais neurônios do que o esperado. Ou seja: as regras da evolução do cérebro de primatas também se aplicam a nós, como deveriam.
Se algo nos torna especiais, é a combinação de sermos primatas (e não, por exemplo, roedores, o que nos permite concentrar um grande número de neurônios em um volume pequeno) e, dentre os primatas, os felizes portadores do maior cérebro -e, portanto, do maior número de neurônios. Bons argumentos para Darwin responder aos seus detratores: "Sou primata, sim -e com muita honra".
Sugerimos então que os pontos fora da curva seriam não os humanos, mas os orangotangos e gorilas, donos, ao que tudo indica, de cérebros igualmente "normais" de primata, mas corpos exageradamente grandes. Tamanha inversão de valores, no entanto, impediu que nosso artigo fosse publicado na prestigiosa revista "Science" -porque um parecerista implicou com a ideia. Mudar o status quo da ciência dá trabalho...
Mas os pareceristas do "Journal of Comparative Neurology" gostaram da ideia -como muitos de meus pares, aliás-, e agora estamos prontos para ver o que o restante da comunidade científica terá a dizer. Acho divertido pensar que, por causa de ciência "made in Brazil", livros-texto em várias línguas talvez sejam revistos; Roberto Lent [pesquisador da UFRJ] já está pensando no que fazer com seus "Cem Bilhões de Neurônios" [ed. Atheneu].
E público e mídia, ao que parece, estão receptivos. Também, pudera; há 150 anos que Darwin nos prepara o terreno.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante), entre outros.


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