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+Debate
Que macaquice!
Quantidade
de neurônios no cérebro reforça a proximidade entre seres humanos
e outros primatas -ideia pela qual Darwin
foi hostilizado
SUZANA HERCULANO-HOUZEL
COLUNISTA DA FOLHA
Mesmo sendo
apenas vagamente relacionada a uma
eventual cura
para doenças ou a um tratamento novo (coisa que 5 entre
7 jornalistas quiseram saber), a
descoberta mais recente de
nosso laboratório ganhou reportagens -favoráveis- na TV
e em vários jornais no país:
"Um primata nada especial",
"Cérebro humano está no padrão dos primatas", "Cientistas
brasileiros derrubam mitos sobre o cérebro".
A bióloga em mim fica feliz
com uma coincidência: nosso
artigo -mostrando que o cérebro humano, devido ao seu número de neurônios e outras células, é apenas um cérebro
grande de primata nada "maior
do que o esperado"- foi publicado no "Journal of Comparative Neurology" [Jornal de
Neurologia Comparativa] justamente no ano do bicentenário do nascimento de Charles
Darwin.
Lembro de Darwin especialmente ao pensar na recepção
que nossa descoberta vem obtendo do público, da mídia e de
nossos pares.
Há 150 anos, ele ousou dizer
que temos um ancestral em comum com os demais primatas
vivos, como primos têm avós
em comum -e foi recebido
com escárnio e indignação por
boa parte do público e dos jornais, cujas charges o mostravam em um corpo de macaco.
Sobretudo para os representantes masculinos e brancos da
espécie que dominava meio
mundo, sermos primos (ainda
que distantes) de macacos e gorilas não parecia uma honra à
altura da "espécie mais inteligente da Terra", supostamente
criada "à imagem de Deus", e
não de outros primatas.
Sem resistência
Por isso, quando em 2007 comecei a apresentar em palestras para o público leigo nossos
trabalhos comparando cérebros humanos e de outros primatas e a argumentar que o cérebro humano é apenas um cérebro grande de primata -com
o tamanho e número esperado
de neurônios para um primata
de 60 a 70 kg-, eu esperava alguma resistência do público, se
não indignação.
Mas, para minha grata surpresa (que inicialmente beirava
a decepção, confesso), o público em geral sorria e concordava
com a cabeça quando eu anunciava nossa conclusão: se o cérebro humano é feito segundo
as regras que valem para os demais primatas, Darwin era portanto também um primata
-assim como todos nós.
O que 150 anos de evolução,
história, educação científica e
debates não fazem: hoje posso
chamar meu público de primata e ainda receber sua aprovação bem-humorada.
Desde Darwin, muitos biólogos, psicólogos e neurocientistas se empenham em encontrar
maneiras de identificar características distintivas do cérebro
humano que justificassem nossa "superioridade".
Muitos sossegaram quando,
nos anos 1950, Henry Jerison
calculou o coeficiente de encefalização e demonstrou que,
comparados aos demais mamíferos, "nosso cérebro é de cinco
a sete vezes maior do que o esperado".
Considere que o tamanho do
cérebro cresce junto com o tamanho do corpo na evolução e
olhe para gorilas e orangotangos: donos de corpos até três
vezes maiores que o humano, o
cérebro deles é apenas um terço do nosso. Para o corpo relativamente diminuto que temos,
nosso cérebro deveria ser menor que o dos gorilas.
Mas não é. Assunto encerrado: somos especiais.
Homens primatas
Mas a ideia de que seríamos
especiais não se encaixava com
o que eu aprendera na biologia:
por que as regras da evolução se
aplicariam a todos os outros
animais, menos a nós?
Após cinco anos de pesquisas
determinando e comparando
números de neurônios entre
espécies de mamíferos, chegamos aos humanos, graças a
uma colaboração com a equipe
do Banco de Cérebros da USP.
Com 86 bilhões de neurônios, não 100 bilhões, e sendo
eles metade das células do cérebro, e não um décimo, o cérebro humano é construído da
maneira esperada para um cérebro de primata em um corpo
de 70 kg -não maior do que o
esperado nem com mais neurônios do que o esperado.
Ou seja: as regras da evolução
do cérebro de primatas também se aplicam a nós, como deveriam.
Se algo nos torna especiais, é
a combinação de sermos primatas (e não, por exemplo, roedores, o que nos permite concentrar um grande número de
neurônios em um volume pequeno) e, dentre os primatas, os
felizes portadores do maior cérebro -e, portanto, do maior
número de neurônios.
Bons argumentos para Darwin responder aos seus detratores: "Sou primata, sim -e
com muita honra".
Sugerimos então que os pontos fora da curva seriam não os
humanos, mas os orangotangos
e gorilas, donos, ao que tudo indica, de cérebros igualmente
"normais" de primata, mas corpos exageradamente grandes.
Tamanha inversão de valores, no entanto, impediu que
nosso artigo fosse publicado na
prestigiosa revista "Science"
-porque um parecerista implicou com a ideia. Mudar o status
quo da ciência dá trabalho...
Mas os pareceristas do
"Journal of Comparative Neurology" gostaram da ideia -como muitos de meus pares,
aliás-, e agora estamos prontos para ver o que o restante da
comunidade científica terá a
dizer.
Acho divertido pensar que,
por causa de ciência "made in
Brazil", livros-texto em várias
línguas talvez sejam revistos;
Roberto Lent [pesquisador da
UFRJ] já está pensando no que
fazer com seus "Cem Bilhões de
Neurônios" [ed. Atheneu].
E
público e mídia, ao que parece,
estão receptivos. Também, pudera; há 150 anos que Darwin
nos prepara o terreno.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista e professora da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. É autora de "Fique de Bem com o
Seu Cérebro" (ed. Sextante), entre outros.
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