São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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MEMÓRIA
A musa renegada


A atriz, poeta e cantora Mariajosé de Carvalho, criadora do movimento Ars Nova, foi por 30 anos uma das presenças mais atuantes da vida cultural paulista


ALVARO MACHADO
especial para a Folha

A "neurose" com a qual sempre lutou -à qual chamava "praça pútrida" e "poço de solidão"- era uma dura provação para seus nervos e coração e talvez tivesse atingido o limite. Mariajosé de Carvalho morreu em outubro de 1995, de problemas coronários, deixando o casarão paulistano que habitava para o governo e os gatos.
Raramente se viu "neurose" mais produtiva. Escorada em erudição, vontade e sensibilidade incomuns, essa filha de comerciantes portugueses nascida e enraizada no histórico bairro do Ipiranga, em São Paulo, alimentou em 76 anos de vida uma persona de musa e mestra das artes, de temperamento imprevisível e irascível.
Verdadeira "caixa de Pandora" das relações humanas, o contato com Mariajosé reservava delícias e tormentos inesquecíveis. Ela terminou rompendo invariavelmente com os amigos e admiradores, para os quais surgia, de início, como autêntica musa -até o ator Sérgio Cardoso teve sua conduta pessoal recriminada em carta. A maioria renegou-a, tamanha era a precisão da estocada que infligia no momento exato. Com seu código ético demasiado exigente, amargou uma espécie de exílio nos últimos 15 anos de vida.
Mesmo assim, nem um livro daria conta de registrar todas as suas atividades por cinco décadas, no centro da cena cultural paulistana: poetisa da geração de 45, enveredou por formas de vanguarda, como o concretismo; em sua carreira de atriz e diretora tornou-se a maior mestra brasileira de dicção, ensinando impostação e estilo aos grandes nomes do teatro brasileiro; tradutora inspirada, verteu de seis línguas mais de uma centena de clássicos de teatro e poesia; militante cultural, fundou o histórico movimento Ars Nova; cantora e pianista, tornaram-se célebres os saraus que ofereceu em sua casa, sob o nome Cabaret do Gato, entre os anos 60 e 80.
"Monja laica com veleidades de vedete emplumada" -como ela se apresenta a Pedro Nava em carta de novembro de 1981-, Mariajosé de Carvalho iniciou vida artística aos nove anos, tocando sonatas de Beethoven e cantando em corais infantis (foi regida uma vez por Villa-Lobos). Completou o Conservatório Dramático Musical e o curso de geografia e história da USP.
Na década de 40 começou a frequentar, no centro de São Paulo, a livraria Jaraguá, onde se reuniam os poetas depois conhecidos como geração de 45. À mesma época, Décio de Almeida Prado acendeu sua paixão pelo teatro, convidando-a para o Grupo Universitário de Teatro, uma das sementes do Teatro Brasileiro de Comédia paulista.
Sob a direção de Almeida Prado, Mariajosé interpretou, com Cacilda Becker, o "Auto de Inês Pereira e do Escudeiro", adaptação de Gil Vicente encenada no Teatro Municipal de São Paulo.
Também no Municipal, integrou por 15 anos o Coral Paulistano, onde conheceu seu marido, o então cantor e futuro maestro Diogo Pacheco, com o qual passou a partilhar estudos de música contemporânea.
Segundo Almeida Prado, "junto a Pacheco, Mariajosé foi responsável por movimento de renovação musical paralelo àquele que acontecia no teatro de então, fazendo o modernismo e as vanguardas chegarem finalmente ao amante da música". O movimento, fundado em novembro de 54, recebeu o nome de Ars Nova e perdurou até 58, realizando mais de 50 concertos em todo o país.
Por intermédio do pintor Willys de Castro, o Ars Nova travou contato com os poetas paulistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Assim, em 3 de junho de 1957, sob a direção de Mariajosé, o grupo promovia, no TBC, o "primeiro recital mundial de poesia concretista" -na verdade o Ars Nova já fizera outros no Teatro de Arena-, do qual participaram Ruth Escobar e Ítalo Rossi. O recital se constituiu escândalo estético para público e jornais e agravou uma polêmica, pois incluíram-se obras dos cariocas Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim, que atacavam os concretistas paulistas via imprensa.
O contato de Mariajosé com o concretismo não se encerrou aí. Na editora Papyrus, que ela fundou na década de 60, publicou transcriações dos irmãos Campos para obras de Dante, Donne etc. ("Traduzir e Trovar").
Pelo mesmo selo, Mariajosé editou dois volumes seus de poesia concreta ("Aurum et Niger" e "Neomenia").
Em 1954, a poeta e atriz foi convidada por Alfredo Mesquita para ensinar na recém-fundada Escola de Arte Dramática de São Paulo. Após aperfeiçoar seus estudos em Roma, em 1961, Mariajosé elaborou um método original e minucioso. Porém, as exigências curriculares e o estilo autoritário da professora chocaram-se com o clima de "liberação" pós-68, e em 1974, acuada por abaixo-assinado da maioria dos alunos, Mariajosé foi destituída da cadeira criada para ela. À época foi obrigada a deixar também classes de música e história da arte na Escola de Comunicação e Artes da USP.
Dentro ou fora da universidade, deu aulas para nomes como Fernanda Montenegro, Maria Alice Vergueiro, Natália Thimberg, Sérgio Brito, Gianfrancesco Guarnieri, Raul Cortez e dezenas de outros, que provaram a eficiência de seu método com uma articulação e projeção de voz marcantes; para cantoras como Anna Maria Kieffer; e mesmo para políticos como Eduardo Suplicy e Lula (este classificado por ela como "indisciplinado").
Em 1967, com Lélia Abramo, redescobriu e recuperou o Teatro São Pedro (hoje em reforma), antes de passá-lo a Maurício Segall, e iniciou campanha de recuperação dos teatros paulistano. Na opinião de Lélia, atriz que dirigiu num memorável "Agamênon", de Ésquilo, "Mariajosé foi a maior intérprete e exegeta das tragédias gregas, que ela traduziu e adaptou para que nós tivéssemos acesso".
Nos últimos anos de sua vida, Mariajosé de Carvalho intensificou a face de tradutora, acumulando versões de clássicos, poesia negra moderna etc. Poucas foram publicadas, como "Canções de Bilitis", de Pierre Louys, "Salambô", de Flaubert, e o "Leviatã", de Julien Green, realizado em parceria com o amigo crítico Almeida Salles.


Alvaro Machado é jornalista.



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