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Em "Desperta e Lê" o filósofo espanhol Fernando Savater comenta de Spinoza a Spielberg
Volúpia da palavra jovial
Cristovão Tezza
especial para a Folha
O título é estranho: "Desperta e
Lê". O imperativo talvez induza o leitor a imaginar que tem
nas mãos uma versão secreta
da Bíblia, a serviço de alguma seita militar -para quem ama os livros, há uma
incompatibilidade sutil entre o imperativo e a leitura. Mas não se trata de uma ordem unida nem do pragmatismo pateta
das auto-ajudas que abundam no mercado. "Desperta e Lê" é uma coletânea mais
ou menos descosturada de artigos e crônicas do prolífico escritor espanhol Fernando Savater que discutem temas tão
díspares como a ética de Spinoza e o filme "Tubarão", de Spielberg.
Com mais de 40 livros
publicados, Savater já se
definiu em uma entrevista
como um "diletante" do
pensamento, "talvez um
"philosophe" à maneira
francesa". Tendo como
projeto juvenil "escrever
como todo mundo", sofrendo na carne a ditadura de Franco, sua carreira de professor
foi interrompida com a expulsão da Universidade Autônoma de Madri e, abraçando cedo o jornalismo, Savater viveu
ao mesmo tempo um trânsito sólido pela
filosofia, traduzindo o romeno E.M. Cioran, uma de suas grandes admirações, e
pensadores como Voltaire e Diderot.
No Brasil, a Martins Fontes publicou
alguns de seus livros, como "O Valor de
Educar" e "Ética para Meu Filho", títulos
que talvez expliquem o resíduo pedagógico desta coletânea; a sua linguagem
muitas vezes viaja da "descrição" à análise fria dos fatos da cultura, para a "prescrição", o tom moralizante do professor.
Savater é desses escritores que sentem
a volúpia da palavra, um dom que tanto
pode arrastar prazerosamente o leitor
quanto arrastar o próprio
autor, que frequentemente avança sem rumo na
correnteza dos pensamentos e das citações. No
caso dele, pela força jornalística do texto, a correnteza será sempre leve,
e as citações terão aquele
ar inocente de jogo literário em que a história, suprimida, permite
colocar Platão ao lado de Tarzan sem
maiores danos.
"Desperta e Lê" divide-se em quatro
partes, numa estrutura bastante livre. Há
de tudo ali: breves ensaios sobre ética,
em que sobressai uma de suas preocupações centrais, a oposição entre universalismo e nacionalismo; relatos históricos,
como a saborosa história do náufrago
que no século 16 lutou pelos maias contra seus conterrâneos espanhóis; resenhas sobre autores célebres, como Voltaire, e sobre outros que nos dizem pouco, como Rafael Sánchez Ferlosio; comentários apaixonados sobre filmes e
atores -Savater, como quase todo mundo, leva o cinema a sério, defendendo o
entretenimento como expressão cultural. Nesse terreno, Savater resenha escritores da formação de uma imensa geração de leitores, como H.G. Wells, no passado, e Michael Crichton, nos dias de hoje. Em alguns momentos, a ligeireza paga
pedágio ao lugar-comum ("O importante, o urgente, não é educar para o sexo,
mas educar para o amor"), mas quase
sempre seu texto nos recompensa pela
graça e poder de sugestão, mesmo quando não concordamos com ele.
Um bom exemplo da sua estratégia está em "Os Sonhos de Hitler Rousseau".
Para elogiar um livro do escritor basco
Jon Juaristi, Savater lembra um curioso
candidato à prefeitura de Bogotá chamado Hitler Rousseau: "Pois em qualquer
nacionalismo (...) há muito do oxímoro
encerrado nesses dois sobrenomes sobrepostos. Algo de prístino, igualitário e
essencialmente bondoso, acompanhado
de algo persecutório e excludente; a utopia originária do melhor como justificação para a atualização lamentável do
pior; a nostalgia de uma intenção que se
torna historicamente má à força de evocar seu direito genealógico à bondade indiscutível". Pelo seu estilo, que olha para
todos os lados ao mesmo tempo, até as
referências a escritores para nós desconhecidos passam a ser interessantes pela
tese que evocam, pela imagem que criam
ou pelo paralelo que traçam.
O eixo filosófico de seu olhar transparece nítido na primeira parte do livro, em
que comenta as implicações éticas dos
pressupostos do particular e do universal
e faz uma defesa do humanismo, aparentemente simples ("é preciso reclamar
uma política humanista em escala planetária"), mas sempre participativa: em
última instância, é apenas nesse terreno
prático que o pensamento faz sentido
para Savater. Daí a sua mal disfarçada
má vontade para com os filósofos maiores, os construtores de sistemas, como
Hegel ou Heidegger, a quem faltaria "jovialidade", o que é uma forma engraçada
de justificar o fato de não ser um deles.
Mas as eventuais imprecisões, inerentes ao comentário jornalístico, como o de
identificar "universais morais" com
"universais linguísticos" (se de fato há
universais linguísticos, eles serão abstrações gramaticais desprovidas de valor,
enquanto universais morais só têm sentido como categorias de valor, portanto
culturais e intencionalmente construídos), não tiram de Savater as qualidades
de seu texto. Os que não gostam dele (e
não são poucos, a crer na autodefesa que
implicitamente percorre o livro) deveriam menos maldizer os seus pontos de
vista e mais lamentar que não haja um
número maior de jornalistas com a sua
formação e o seu talento generosamente
à disposição dos leitores.
Cristovão Tezza é escritor, autor de "Breve Espaço entre Cor e Sombra" (Rocco), entre outros, e
professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná.
Desperta e Lê<BR>
288 págs., R$ 28,50
de Fernando Savater. Trad. de
Monica Stahel. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho,
330/340, CEP 01325-000, SP,
tel. 0/ xx/ 11/239-3677).
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