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Ponto de fuga
Objeto e sujeito
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
As obras de arte fogem, escapam, escondem, revelam, mudam, transformam-se sempre, sem parar. Dizem que elas são eternas. Pode ser.
Mas nem por isso permanecem as mesmas.
Há metamorfoses materiais, devido ao envelhecimento. Há, sobretudo, com o tempo, sentidos que mudam, porque as percepções mudaram.
De um modo misterioso, esses significados diferentes terminam sempre por fazer
parte delas. As obras dependem das leituras que as interpretam, mas essas leituras,
forçosamente parciais, nunca levantam
plenamente a cortina do mistério e só podem provir daquilo que já está lá dentro.
Caso contrário, falam de outra coisa, ou seja, mostram-se impertinentes ou indignas.
Teorias e mentes mais científicas tentaram e tentam penetrar nos secretos mecanismos das artes, muitas vezes menos para
entendê-los do que para explicá-los. Buscam destrinchar o objeto artístico até seus
últimos refúgios. Objeto: justamente, a noção acusa o equívoco. Objeto significa submetido, posto e disposto pelo sujeito, ou seja, pelo teórico, pelo científico, pelo crítico.
Ora, a obra não é objeto, é sujeito. Por outros canais, que são os da intuição, nos
quais não cabem o conceito, a definição, a
explicitação racional, ela dirige-se à humanidade. A posição da arte, nesse sentido, é a
mesma da filosofia, também sujeito interpretador, embora os meios e os resultados
de ambas sejam sem dúvida diversos. Assim, é no respeito das visadas ativas, própria à arte, que as melhores leituras se fazem. São obrigadas ao exercício da intuição
e à modéstia diante dos limites impostos
pelo inexplicável. Supondo dominar articulações e mecanismos de um objeto, as
outras fracassam.
Mestre
Há algo de comovente no recente livro de
Norbert Elias, publicado pela Jorge Zahar,
"A Peregrinação de Watteau à Ilha do
Amor". É um pequeno ensaio redigido em
1983. Nele, fica claro o imenso afeto que o
autor consagra à cultura do século 18; sua
descrição minuciosa do quadro de Watteau
comprova a familiaridade amorosa.
O enfoque busca articular o singular, tanto no que se refere à obra quanto ao artista,
a amplas explicações sociológicas da história. "Watteau não passou incólume pela
tragédia social do grande artista proveniente das classes inferiores na época da sociedade de corte. Pode ser que uma tendência
pessoal à melancolia a tenha agravado." De
que tragédia se trata? Da liberdade, da autonomia criadora do artista? Não seria isso
antes a projeção de um sentimento romântico, posterior, e descabido nos tempos de
Watteau? Nem mesmo a ruptura "social"
de Mozart (se é que de fato ela existiu), tão
explorada por seus biógrafos, retomada em
modo emblemático por Mário de Andrade
em seu artigo "O Pontapé de Mozart" e
chave essencial de outro livro escrito por
Elias, "Mozart - A Sociologia de um Gênio"
(Jorge Zahar), pode ser aplicada ao pintor
de Citera com legitimidade, pois os tempos
não eram os mesmos.
Frases
É tocante a candura com a qual "A Peregrinação de Watteau..." ensina gravemente
que "toda obra de arte com funções artísticas, assim como toda utopia pictórica ou literária, pode ter também, ao mesmo tempo, em ato ou em potência, funções ideológicas". Ou que os aristocratas "permitiam
que suas casas fossem decoradas com pinturas de alguém de classe inferior".
Fio
Os comentários do século 19 sobre o quadro "Peregrinação a Citera" permitiram a
Elias traçar um fio que passa, sobretudo,
por Nerval, Baudelaire e os irmãos Goncourt. "Fazer a viagem de Citera" é eufemismo literário para o amor físico. Nerval e
Baudelaire injetam nele um composto de
amor e morte, de desejo e degradação, física ou moral, enxergando, por trás dos galanteios e dos cupidos, a carniça, o apodrecimento inevitável. Os Goncourt voltam-se
para a graça alegre e elegante da obra, como
se dissessem à sociedade arrivista dos tempos de Napoleão 3º que havia ali um modelo a ser seguido. Com efeito, a posteridade
do quadro, que atinge muitos outros artistas, entre eles pintores e músicos, é um belo
tema a ser aprofundado.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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