São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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Ponto de fuga

Objeto e sujeito

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

As obras de arte fogem, escapam, escondem, revelam, mudam, transformam-se sempre, sem parar. Dizem que elas são eternas. Pode ser. Mas nem por isso permanecem as mesmas. Há metamorfoses materiais, devido ao envelhecimento. Há, sobretudo, com o tempo, sentidos que mudam, porque as percepções mudaram.
De um modo misterioso, esses significados diferentes terminam sempre por fazer parte delas. As obras dependem das leituras que as interpretam, mas essas leituras, forçosamente parciais, nunca levantam plenamente a cortina do mistério e só podem provir daquilo que já está lá dentro. Caso contrário, falam de outra coisa, ou seja, mostram-se impertinentes ou indignas.
Teorias e mentes mais científicas tentaram e tentam penetrar nos secretos mecanismos das artes, muitas vezes menos para entendê-los do que para explicá-los. Buscam destrinchar o objeto artístico até seus últimos refúgios. Objeto: justamente, a noção acusa o equívoco. Objeto significa submetido, posto e disposto pelo sujeito, ou seja, pelo teórico, pelo científico, pelo crítico.
Ora, a obra não é objeto, é sujeito. Por outros canais, que são os da intuição, nos quais não cabem o conceito, a definição, a explicitação racional, ela dirige-se à humanidade. A posição da arte, nesse sentido, é a mesma da filosofia, também sujeito interpretador, embora os meios e os resultados de ambas sejam sem dúvida diversos. Assim, é no respeito das visadas ativas, própria à arte, que as melhores leituras se fazem. São obrigadas ao exercício da intuição e à modéstia diante dos limites impostos pelo inexplicável. Supondo dominar articulações e mecanismos de um objeto, as outras fracassam.

Mestre
Há algo de comovente no recente livro de Norbert Elias, publicado pela Jorge Zahar, "A Peregrinação de Watteau à Ilha do Amor". É um pequeno ensaio redigido em 1983. Nele, fica claro o imenso afeto que o autor consagra à cultura do século 18; sua descrição minuciosa do quadro de Watteau comprova a familiaridade amorosa.
O enfoque busca articular o singular, tanto no que se refere à obra quanto ao artista, a amplas explicações sociológicas da história. "Watteau não passou incólume pela tragédia social do grande artista proveniente das classes inferiores na época da sociedade de corte. Pode ser que uma tendência pessoal à melancolia a tenha agravado." De que tragédia se trata? Da liberdade, da autonomia criadora do artista? Não seria isso antes a projeção de um sentimento romântico, posterior, e descabido nos tempos de Watteau? Nem mesmo a ruptura "social" de Mozart (se é que de fato ela existiu), tão explorada por seus biógrafos, retomada em modo emblemático por Mário de Andrade em seu artigo "O Pontapé de Mozart" e chave essencial de outro livro escrito por Elias, "Mozart - A Sociologia de um Gênio" (Jorge Zahar), pode ser aplicada ao pintor de Citera com legitimidade, pois os tempos não eram os mesmos.

Frases
É tocante a candura com a qual "A Peregrinação de Watteau..." ensina gravemente que "toda obra de arte com funções artísticas, assim como toda utopia pictórica ou literária, pode ter também, ao mesmo tempo, em ato ou em potência, funções ideológicas". Ou que os aristocratas "permitiam que suas casas fossem decoradas com pinturas de alguém de classe inferior".

Fio
Os comentários do século 19 sobre o quadro "Peregrinação a Citera" permitiram a Elias traçar um fio que passa, sobretudo, por Nerval, Baudelaire e os irmãos Goncourt. "Fazer a viagem de Citera" é eufemismo literário para o amor físico. Nerval e Baudelaire injetam nele um composto de amor e morte, de desejo e degradação, física ou moral, enxergando, por trás dos galanteios e dos cupidos, a carniça, o apodrecimento inevitável. Os Goncourt voltam-se para a graça alegre e elegante da obra, como se dissessem à sociedade arrivista dos tempos de Napoleão 3º que havia ali um modelo a ser seguido. Com efeito, a posteridade do quadro, que atinge muitos outros artistas, entre eles pintores e músicos, é um belo tema a ser aprofundado.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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