São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

"A Crítica Cúmplice", de Ana Bernstein, analisa a atuação de Décio de Almeida Prado como crítico de teatro, entre os anos de 1946 e 1968, e seus estudos e pesquisas decisivos sobre a história da dramaturgia nacional

Um mestre em formação

SÍLVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Crítica Cúmplice - Décio de Almeida Prado e a Formação do Teatro Brasileiro Moderno", de Ana Bernstein, publicado em bem cuidada edição do Instituto Moreira Salles, é um marco na pesquisa universitária de teatro no país. Resultante de dissertação de mestrado concluída em 1995, orientada pela pesquisadora Flora Süssekind, autora do excelente prefácio, tem o dom raro de transformar seu tema em reflexão sobre o presente ao prospectar a função da crítica e dos estudos teatrais à medida que desvenda a relação de cumplicidade entre nosso maior crítico e a parcela da produção cênica moderna que lhe coube avaliar.
Guiada pelo percurso de Décio de Almeida Prado -que divide em três períodos, a partir dos primeiros artigos na revista "Clima", em 1941- e auxiliada por um subtexto insistente e inquieto, explicitado nas muitas questões que pontuam as entrevistas publicadas em apêndice, Bernstein faz dos 22 anos de produção crítica do autor um instrumento de interrogação indireta da pesquisa teatral contemporânea.
Sem dúvida, o questionamento é facilitado pelo perfil da obra que analisa. Considerada a primeira manifestação pública do espírito universitário de especialização, formado na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP -que a partir da década de 40 altera a feição da crítica brasileira-, a produção de Décio de Almeida Prado reflete, por contraste, os limites dos estudos acadêmicos atuais, em geral publicados em veículos de divulgação restrita ou pouco afeitos à interlocução direta com a criação teatral, tarefa desempenhada pelo crítico com exemplar mestria.
Além do mais, ao definir o contorno dessa "crítica cúmplice" -na verdade um conjunto de ensaios de caráter histórico, analítico, informativo e pedagógico sobre quase três décadas de teatro paulista-, a autora salienta o formato da crítica teatral de hoje, em geral restrita a juízos sumários de valor ou, em casos exemplares, condenada a um espantoso exercício de síntese.

Artigos irretocáveis
Fiel a seu tema, Bernstein faz um trabalho de alta qualidade quando recupera, com riqueza de fontes e método historiográfico, a vasta produção jornalística de Décio de Almeida Prado, periodizando, a um só tempo, a crítica e o teatro brasileiro modernos, faces aparentemente indissociáveis do mesmo movimento de renovação.
De fato, a posição de crítico de "O Estado de S. Paulo", que Décio de Almeida Prado ocupa de 1946 a 1968, dá a seus artigos irretocáveis o estatuto de documentos de formação do teatro brasileiro moderno.
No entanto essa mimese entre teatro e crítica não é isenta de contradições. É o que se observa, por exemplo, na dificuldade da autora em discriminar a matéria que analisa. A crítica aparece de tal forma associada às experiências inaugurais do teatro brasileiro moderno, especialmente do Teatro Brasileiro de Comédia, que Bernstein se vê às voltas com a reconstituição simultânea do comentário e do espetáculo, identificando um ao outro.


A nova realidade teatral põe o crítico numa posição desconfor-tável, de ruptura do pacto anterior

É verdade que, em certas passagens, procura avaliar as produções dos comediantes, do Teatro de Arena e, especialmente, do Oficina com voz própria, mas sempre retorna, por necessidade, à crítica de Décio de Almeida Prado, tomada como paradigma do movimento teatral moderno. Essa simbiose entre discurso e teatro permeia o livro a tal ponto que a dissociação aparece apenas quando os pressupostos de um deixam de servir à leitura do outro. É o que acontece, por exemplo, na última fase do trabalho do crítico, que se estende de meados da década de 60 até 1968 e termina com o famoso incidente de devolução do Prêmio Saci pela classe teatral paulista, que o levaria a desligar-se de suas funções. Como observa a autora, essa é a face mais visível do problema.
Na verdade, Décio de Almeida Prado atravessa um período de estranhamento de categorias e revisão de critérios, movido pelas primeiras experiências de "teatro agressivo" do Oficina, em "Roda Viva" e "Gracias Señor", influenciadas pela poética da crueldade de Antonin Artaud, pelos happenings do Living Theatre e, especialmente, pelo impulso de negação do texto e da distinção entre teatro e vida, característico da contracultura.
A nova realidade teatral coloca o crítico numa posição desconfortável, de ruptura do pacto anterior, além de contradizer suas concepções mais profundas, especialmente aquela, influenciada por Jacques Copeau e Louis Jouvet, que vê no texto dramático o elemento nuclear de criação da cena.
O respeito absoluto de Décio de Almeida Prado pela fonte literária e a conseqüente compreensão do dramaturgo como autoridade máxima do teatro e do encenador como "o homem que ausculta e faz falar as palavras", se são perfeitamente adequados a grande parcela da criação teatral dos anos 40, 50 e 60, são também responsáveis por suas discordâncias em relação a espetáculos de Ziembinski ("Desejo"), Antunes Filho ("As Feiticeiras de Salém") e do próprio José Celso Martinez Corrêa, não por acaso encenadores autorais.
O que, paradoxalmente, comprova a excelente produção do crítico, que não resulta apenas da individualidade do autor, por excepcional que seja, mas da capacidade de responder às idéias que informam a criação teatral de sua época.

O conjunto da obra
A última etapa de trabalho de Décio de Almeida Prado, posterior ao abandono da crítica, é dedicada exclusivamente à pesquisa de cunho histórico, que desenvolve na mesma universidade em que se formou.
Ainda que analise de forma breve os alentados estudos acadêmicos produzidos pelo ensaísta no período, é nesse capítulo que Bernstein lança mais luz sobre o conjunto da obra. Pois, à semelhança de seus companheiros de "Clima", o que Décio de Almeida Prado investiga nessa fase é a formação do teatro brasileiro, usando como guia, da mesma forma que Antonio Candido, a noção de sistema.
Na tentativa de discriminar um conjunto de obras ligadas por denominadores comuns e definir com essa linhagem uma tradição brasileira, ele elabora dois estudos decisivos sobre o ator e empresário João Caetano, que complementa com a pesquisa sobre o teatro brasileiro no romantismo. A seu ver, o teatro romântico constitui no país o primeiro sistema integrado de atores, autores e espectadores e fornece a base de sustentação de nossa história teatral. História que Bernstein enriquece, ao apresentar ao leitor o fascinante processo de formação do crítico e do teatro brasileiro modernos.

Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Memória e Invenção" (Perspectiva).

A Crítica Cúmplice - Décio de Almeida Prado e a Formação do Teatro Brasileiro Moderno
382 págs., R$ 65,00
de Ana Bernstein. Instituto Moreira Salles (r. Piauí, 844, SP, tel. 0/ xx/11/3825-2560).


Texto Anterior: Portal IMPOSSÍVEL
Próximo Texto: A celebridade inconformista
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.