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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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"1984" em 2003

O único problema de Orwell foi achar que ficaríamos horrorizados quando lêssemos a frase -hoje banal em qualquer shopping center- anunciando, entre a simpatia e a ameaça: "Sorria, você está sendo filmado". Não podia imaginar que passaríamos desse modelo disciplinar, o "panoptismo", com seu poder vigilante e coercitivo, descrito em "1984", centrado em um ditador e numa polícia do pensamento, para uma sociedade do controle difuso, da vigilância consentida e desejada, em que a exposição da privacidade é um valor, não uma tortura. A vigilância continuada de "1984" deixou de ser uma aberração para se tornar um "sou visto, logo existo", "zoológico humano" televisivo, fonte de faturamento para participantes e mídia. O infrator, vigiado e punido pelo Grande Irmão de Orwell, foi substituído pelo portador, os infratores potenciais como no filme "Minorit Report". "Tolerância zero" é o slogan da sociedade policial em que somos todos delinquentes potenciais. Houve uma mutação do capitalismo, a vigilância se tornou um divertimento e uma prática generalizada (bina, celular, câmeras de vigilância, rastreadores na internet se tornaram eletrodomésticos). As tecnologias sem fio significam tanto novas liberdades como nova escravidão. Não é preciso mais confinar ninguém, já estamos numa prisão sem grades, virtual, o celular é a coleira eletrônica. Não há diferença, diz Deleuze, entre um animal numa reserva e um homem numa empresa. Para que ditador? Só nos resta a delinquência e a sabotagem social, outro "divertimento" que Orwell também não previu.


Ivana Bentes, professora de comunicação da Universidade Federal do RJ


"1984" é um romance que se transformou em um clássico político tout court: nunca terminou de dizer o que tinha a dizer. Seu eixo gira em torno da reflexão sobre a natureza da experiência totalitária e se orienta pela noção de supérfluo. Daí seu principal equívoco histórico: em "1984", a força desumanizadora da necessidade pretende ser um instrumento inigualável de poder para governos totalitários, permitindo o controle de uma massa de seres cujo único objetivo de vida, se é que permanece algum, é a urgência do suprimento da sobrevivência da espécie animal humana. Mas, daí, também, o diagnóstico: o regime total é uma possibilidade que permanece inscrita na lógica política do Ocidente, fruto da assustadora constatação de que os homens são supérfluos e podem ser eliminados sem que isso seja percebido como um risco pelos governos. E, por fim, daí sua notável conclusão: é a experiência da extrema solidão do homem moderno que produz a essência política do Grande Irmão: ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma.

Heloisa Starling, professora de história na Universidade Federal de Minas Gerais


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