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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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A Caixa do Riso, máquina criada nos anos 50 para acentuar ou substituir a reação de uma platéia ao vivo na TV, antecipou a lógica das emoções das novas mídias ao privar o homem moderno de sua autêntica experiência da passividade

A RISADA ENLATADA
[OU O RETORNO DOS REPRIMIDOS]

Gustavo Cuevas - 9.mai.2000/France Presse
Balão sobrevoa Madri (Espanha), marcando o início do 8º Aberto de Balões


Slavoj Zizek

No dia 8 de abril, Charles R. Douglass, o inventor da "risada enlatada" -a risada artificial que acompanha os momentos engraçados nos seriados de TV- morreu aos 93 anos em Templeton, na Califórnia. No início dos anos 50, ele criou essa idéia para acentuar ou substituir a reação de uma platéia ao vivo na televisão: a primeira máquina, que tinha quase um metro de altura, funcionava como um órgão, com um teclado para escolher o estilo, o sexo e a idade da risada bem como um pedal para regular o tempo da reação. Ele chamou o aparelho de "máquina do riso" ou "máquina adoçante", mas a máquina ficou mais conhecida como a Caixa do Riso. Usada pela primeira vez nos episódios de "The Jack Benny Show" e "I Love Lucy", hoje a versão mais moderna é exportada para o mundo todo. Essa presença irresistível nos impede de enxergar o inaudito paradoxo da "risada enlatada": se refletirmos um pouco a respeito desse fenômeno, veremos que ele abala as pressuposições naturais relativas ao estado de nossas emoções mais profundas. A "risada enlatada" marca um verdadeiro "retorno dos reprimidos", de uma atitude que normalmente atribuímos a "primitivos". Faz lembrar o estranho fenômeno das "carpideiras" (mulheres contratadas para chorar em funerais), nas sociedades tradicionais: um homem rico pode contratá-las para que chorem e se lamentem em seu lugar, enquanto ele próprio pode dedicar-se a algo mais lucrativo, como cuidar do espólio do morto. Esse papel pode ser representado não apenas por outro ser humano, mas até mesmo por uma máquina, como no caso das famosas "rodas de orações" tibetanas: eu coloco uma oração escrita em uma roda e giro-a mecanicamente (ou, melhor ainda, uno a roda a um moinho que a gira) para que ela reze por mim -ou melhor, eu "objetivamente" rezo por meio dela, enquanto minha cabeça pode estar ocupada com os mais obscenos pensamentos sexuais...

"Friends" e "Cheers"
Por incrível que pareça, a invenção de Douglass provou que o mesmo mecanismo "primitivo" também funciona em nossas sociedades altamente desenvolvidas: quando, à tarde, chego em casa, exausto demais para me dedicar a uma atividade útil, eu simplesmente aperto o botão da TV e assisto a "Cheers", "Friends" ou a outro seriado; mesmo se eu não rir, mas apenas olhar fixamente para a tela, cansado depois de um dia difícil de trabalho, eu não obstante me sinto reconfortado depois do programa -é como se a tela de TV estivesse literalmente rindo no meu lugar, em vez de mim...
Antes de se acostumar com a "risada enlatada", entretanto, há geralmente um breve período de desconforto: a primeira reação ao mecanismo é de choque, uma vez que é difícil aceitar que uma máquina em algum lugar possa "rir por mim" -há algo inerentemente obsceno nesse fenômeno. No entanto, com o tempo, acostuma-se a isso e o fenômeno é sentido como sendo "natural". É justamente isso que perturba tanto na "risada enlatada": meus sentimentos mais profundos podem ser radicalmente exteriorizados, eu posso literalmente "rir e chorar através do outro".
Essa lógica funciona não apenas para as emoções, mas também para as crenças. Segundo uma conhecida anedota antropológica, os "primitivos" aos quais se atribuíam certas "crenças supersticiosas" (de que descendem de peixes ou de pássaros, por exemplo), quando questionados diretamente sobre essas crenças, responderam: "É claro que não -não somos tão idiotas! Mas me disseram que alguns dos nossos ancestrais realmente acreditavam nisso..." -em resumo, eles transferiram sua crença para outra pessoa. Não fazemos o mesmo com nossos filhos? Executamos o ritual do Papai Noel porque nossos filhos (supostamente) acreditam nele e porque não queremos desapontá-los; eles fingem acreditar para não nos desapontar, não abalar a nossa crença na ingenuidade deles (e para ganhar presentes, é claro) etc.
Não seria essa também a desculpa típica do lendário político desonesto que se torna honesto? "Não posso desapontar as pessoas comuns que acreditam nisso (ou em mim)." E, além disso, não seria a necessidade de encontrar um outro que "realmente acredita" a mesma que nos impele na necessidade de estigmatizar o Outro como sendo um "fundamentalista" (religioso ou étnico)?
Estranhamente, algumas crenças sempre parecem funcionar "à distância": para que a crença funcione, é preciso haver algum avalista definitivo dela, no entanto esse avalista é sempre preterido, deslocado, nunca presente in persona. A questão, obviamente, é que o sujeito que acredita diretamente não precisa existir para que a crença seja eficaz: basta apenas justamente pressupor sua existência, isto é, acreditar nela, seja sob o aspecto de um símbolo mitológico que não faz parte de nossa realidade ou sob o aspecto do modo impessoal "-se" ("acredita-se que...").
Sob esse prisma, surge a tentação de suplementar a noção em voga de "interatividade" com sua duplicata obscura e muito mais estranha, a noção de "interpassividade" (a idéia foi inventada por Robert Pfaller, professor na Universidade de Arte e Desenho Industrial de Linz, na Áustria). Hoje, é comum enfatizar como, devido às novas mídias eletrônicas, o consumo passivo de um texto ou de uma obra de arte acabou: eu não fico mais simplesmente olhando para a tela, eu interajo cada vez mais com ela, entrando em uma relação dialógica (desde a escolha dos programas, passando pela participação em debates em uma comunidade virtual, até a determinação direta da conclusão da trama nas chamadas "narrativas interativas").


Não nos deparamos com a "interpassividade" em um grande número de cartazes publicitários atuais, que desfrutam do produto em nosso lugar?


Aqueles que apreciam o potencial democrático das novas mídias geralmente ressaltam precisamente essas características: como o espaço cibernético abre a possibilidade para que a maioria das pessoas possa sair do papel de observador passivo depois do espetáculo encenado por outros e passar a participar ativamente não apenas do espetáculo, mas também cada vez mais do estabelecimento das próprias regras do espetáculo.
No entanto não estaria o outro lado da minha interação com o objeto, em vez de simplesmente acompanhando o programa -não a situação na qual o objeto em si tira de mim, me priva da minha própria reação passiva de satisfação (ou de tristeza ou de dar risada), sendo que é o próprio objeto que "se diverte com o programa" no meu lugar-, me deixando livre da tarefa do superego de me divertir... Não nos deparamos com a "interpassividade" em um grande número de cartazes publicitários atuais, que desfrutam do produto em nosso lugar? Latas de Coca-Cola com os dizeres "Uuh! Uuh! Que sabor!" simulam de antemão a reação ideal do consumidor.
Quase todo aficionado por vídeo que grava compulsivamente centenas de filmes (eu mesmo entre eles) tem plena consciência de que o efeito imediato de possuir um aparelho de videocassete é que a pessoa acaba assistindo a menos filmes do que o fazia nos bons e velhos tempos do simples aparelho de TV sem um videocassete; nunca se tem tempo para ver TV, então, em vez de perder uma tarde preciosa, simplesmente grava-se o filme e guarda-se o mesmo para uma futura ocasião (para a qual, é claro, quase nunca se tem tempo...).
Portanto, apesar de eu não assistir a filmes de fato, a própria certeza de que os filmes que eu adoro estão guardados na minha videoteca me dá uma profunda satisfação e, ocasionalmente, me permite simplesmente relaxar e entregar-me à deliciosa arte do "far'niente" -como se o vídeo estivesse de certa forma assistindo aos filmes por mim, no meu lugar...
Parece que, hoje, até a pornografia funciona cada vez mais de forma interpassiva: filmes para adultos não são mais o meio primariamente destinado a excitar o usuário em sua solitária atividade masturbatória -o simples fato de olhar para a tela onde está a ação é suficiente, isto é, basta que eu observe como os outros se satisfazem no meu lugar. Outro exemplo de interpassividade: todos nos lembramos da cena embaraçosa em que uma pessoa conta uma péssima piada de mau gosto e então, quando ninguém em volta dela ri, ela própria cai na gargalhada, repetindo "Esta foi engraçada!" ou algo do gênero; em outras palavras, ela próprio representou a reação que esperava de seu público. A situação aqui é semelhante, mas nem por isso diferente daquela da "risada enlatada" do televisor: o agente que ri em nosso lugar (isto é, por meio do qual nós, os espectadores entediados e desprovidos de graça, rimos mesmo assim) não é o anônimo "grande Outro" do público invisível e artificial, mas o próprio narrador da piada.
Ele faz isso para garantir a inscrição de seu ato no "grande Outro", a ordem simbólica, isto é, seu riso compulsivo não é diferente de sons como "Opa!", que nos sentimos obrigados a emitir quando tropeçamos ou fazemos alguma estupidez. O mistério deste último caso é que também é possível que uma outra pessoa que simplesmente testemunhou a minha imbecilidade fale "Opa!" por mim.
Essa interpassividade deve se opor ao "List der Vernunft" ("habilidade da Razão") de Hegel: no caso da "habilidade da Razão", eu sou ativo através do outro, isto é, eu posso continuar passivo enquanto o Outro faz isso por mim (como a idéia hegeliana que permanece de fora do conflito, deixando as paixões humanas fazerem o trabalho por ela); no caso da interpassividade, eu sou passivo através do outro, isto é, eu passo para o outro o aspecto passivo (de aproveitar) enquanto posso permanecer ativamente engajado (posso continuar trabalhando à tarde, enquanto o videocassete passivamente se diverte por mim; posso negociar o espólio do morto enquanto as carpideiras choram por mim).
Seria preciso, portanto, virar do avesso um dos lugares-comuns da crítica cultural conservadora: em contraste com a noção de que as novas mídias nos tornam consumidores passivos que simplesmente olham fixa e cegamente para a tela, deveria-se alegar que a chamada ameaça às novas mídias reside no fato de que elas nos privam de nossa passividade, de nossa autêntica experiência passiva, e assim nos preparam para a irracional e frenética atividade.
Portanto, voltando a Charles R. Douglass: não seria apropriado se em seu funeral houvesse um conjunto de máquinas de som acompanhando o caixão, lançando lamentos sussurrantes, enquanto seus entes queridos saboreariam uma bela refeição? Talvez, longe de achar isso uma ofensa, ele apreciasse o reconhecimento de um funeral assim.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de Leslie Benzakein.


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