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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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Polêmica entre Dostoiévski e o crítico Bielinski sobre as funções da literatura é reencenada a cada nova geração que surge

O compromisso ideológico do escritor

Juan José Saer

A relação entre Dostoiévski e Bielinski, o famoso crítico literário russo, teórico, nos últimos anos de sua vida, do realismo social e do papel revolucionário da literatura, foi breve, porém intensa e complexa, terminando em ruptura, apesar da apaixonada coincidência intelectual e artística do início. O caso é mítico na história da literatura russa. Em maio de 1845, Dostoiévski, então com 23 anos, acabara de terminar o manuscrito de seu primeiro livro, o romance "Pobre Gente". Seu primeiro leitor, o poeta Nekrassóv, entusiasmado, decide mostrar o manuscrito a Bielinski, que, embora cético em um primeiro momento, aceita escutar sua leitura. Aos poucos, o texto desse desconhecido vai vencendo suas resistências até provocar-lhe uma indizível emoção, convencendo-o de que um escritor profundamente original acabara de surgir nas letras russas. Bielinski era o crítico mais influente da Rússia naquele momento, o que fez com que, no dia seguinte, Dostoiévski fosse célebre no mundo literário, sem ainda ter publicado uma única linha, excetuando a tradução de "Eugênia Grandet", de Balzac. Depois de sua primeira visita a Bielinski, saiu para a rua se sentindo, segundo suas próprias palavras, "como que enfeitiçado". O feitiço durou pouco. No ano seguinte, Dostoiévski publica seu segundo livro, a novela "O Duplo", que, em vez de seguir a escola do realismo "natural" recomendada por Bielinski, inspirava-se nos contos fantásticos de Hoffmann e Púchkin. O livro produziu forte rejeição no círculo de Bielinski, e os mesmos que tinham elogiado Dostoiévski por seu primeiro livro o atacaram e ridicularizaram por causa do segundo, de modo que sua reputação literária, que fora forjada numa noite, estava destruída um ano mais tarde, e sua reconstrução levaria duas décadas, em meio aos mais dramáticos acontecimentos.

Estética e política
As discrepâncias entre o crítico e o escritor eram a um só tempo estéticas e políticas: Bielinski, inspirando-se cada vez mais no jacobinismo da Revolução Francesa, pensava que uma ação violenta devia deitar por terra o poder dos czares e considerava que a literatura devia se dedicar principalmente a descrever as reais condições da sociedade russa. Para Dostoiévski, a forma é o principal elemento da obra artística. Quanto à transformação social, sua posição, que reforçou com o passar dos anos, pregava uma espécie de cristianismo messiânico. Leonid Grossman, seu biógrafo, descreve o contraste nos seguintes termos: "Em seus últimos anos, Bielinski combate incansavelmente o romantismo, o fantástico, o idealismo. Reclamava um quadro exato da sociedade para lutar contra ela. Declara guerra contra tudo o que é sonho, intuição, ilusão. Mas Dostoiévski não adotava cegamente a poética da escola naturalista, impondo a condição de conservar seu direito ao romantismo, ao fantástico, e até à psicologia". Duas décadas depois da ruptura, Dostoiévski rememora seu último encontro com Bielinski, em 1847. O crítico estava então tuberculoso e morreria no ano seguinte. Os dois se encontraram na rua, perto da igreja da Epifania, aonde Bielinski costumava ir para contemplar a construção da primeira estação de trens de São Petersburgo. "É um consolo para mim olhar estas obras: por fim, nós também teremos ao menos uma estrada de ferro; você não calcula o alívio que isso significa para mim." Essas palavras comoveram Dostoiévski, mas a ruptura já era irreversível. Em suas declarações estéticas e políticas, Dostoiévski foi seguindo um caminho que o afastou cada vez mais das posições de Bielinski. Mas sua estranha influência continuará presente em sua vida e em sua literatura. A bem da verdade, ele continuou a se debater nessas contradições até sua morte, em 1881. Seu gesto mais surpreendente foi a adesão, no mesmo ano da ruptura com Bielinski, ao círculo de Petrachévski, formado por intelectuais fourieristas partidários do socialismo utópico. Mas, por outro lado, dentro desse círculo Dostoiévski adere à facção de Spejnev, um grupo secreto com um programa ultra-radical de ação violenta. É preso em 1849 e, depois de um simulacro de execução capital, é deportado para a Sibéria por dez anos, quatro dos quais para cumprir uma pena de trabalhos forçados.

Causa absurda
Quando se sabe de sua ruptura com Bielinski, a causa de sua prisão soa absurda: a leitura pública de uma carta de Bielinski a Gogol que fora proibida pelas autoridades, onde o crítico, que poucos anos antes escrevera o primeiro grande ensaio sobre o autor de "Almas Mortas", recrimina seu destinatário mais ou menos pelas mesmas idéias sobre a literatura e a realidade social, opostas às suas, que execrara no próprio Dostoiévski. Também é evidente que, a partir desse momento, a querela com Bielinski e a problemática nela em jogo fornecerão a Dostoiévski os temas, a intriga e a forma de seus principais textos literários, como "Crime e Castigo", "O Idiota", "Os Possessos" e "Os Irmãos Karamazóv". Sobretudo a forma. Para incluir em sua obra as contradições em torno das quais se batem o intelectual e o artista russos, Dostoiévski inventa uma nova modalidade narrativa, a que Bakhtin, como se sabe, chamou "romance polifônico" em seu extraordinário livro "Problemas da Poética de Dostoiévski" (Forense Universitária). E Bakhtin não se cansa de repetir: "O princípio estrutural de Dostoiévski -união de elementos heterogêneos e incompatíveis- constitui a chave artística de seus romances: a polifonia". Nos grandes romances de Dostoiévski, o ponto de vista do autor, encarnado em um personagem, não é nem mais nem menos preponderante que o das outras figuras principais do relato, como se pode apreciar, por exemplo, nos vários membros da família Karamazóv. Um século e meio mais tarde, a querela Dostoiévski/Bielinski parece superada. Hoje todo mundo se declara formalista e proclama a total autonomia do artista e da arte. É a ideologia oficial do mercado artístico na sociedade atual.

Novos tabus
Contudo, apesar dessas insistentes declarações de independência, não é difícil observar as múltiplas coerções que pesam sobre a literatura, patente não apenas na submissão do escritor aos ditames do mercado, cujas leis trabalham contra qualquer tentativa de inovação, mas também na falsa liberdade temática, que, banalizando pretensas transgressões, se contorce nos estreitos limites fixados por novos tabus escrupulosamente respeitados: o sexo, por exemplo, hoje apresentado como uma espécie de esporte mundano, desinfetado de suas impossibilidades e de suas dores. Os que com mais fanatismo proclamam a liberdade do escritor e a preeminência da forma são justamente aqueles que, com fins comerciais, transigem com as mais exorbitantes exigências do mercado.
Mas, por outro lado, as grandes decepções políticas do século 20, com suas trágicas distorções da história, tornaram obsoleta a ilusão de uma arte engajada posta inteiramente "a serviço da revolução", como exigiam os manifestos surrealistas. Uma inédita opacidade caracteriza cada nova etapa da sociedade. Para o escritor de hoje, o presente tem a mesma emaranhada complexidade que teve para Dostoiévski e Bielinski, o que gera dificuldades de leitura e de representação equivalentes àquelas em torno das quais eles se confrontaram. Assumir, por conveniência ou estupidez, o comprometimento ideológico, por mais evidente e rentável que possa parecer, não bastará para ocultar um fato capital: para cada nova geração, a pergunta sobre a razão de ser de uma literatura e a maneira como ela se constrói continuará aberta como uma chaga.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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