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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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+ literatura

Em suas memórias, o escritor Pedro Nava, cujo centenário de nascimento ocorre na quinta-feira, empreende uma exploração cultural e visionária do Brasil

Uma arqueologia do ser histórico

José Maria Cançado
especial para a Folha

Não é pouca gente do chamado "modernismo em Minas" que anda fazendo cem anos: Emílio Moura, Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa. Pedro Nava, contudo, cujo centenário de nascimento é no dia 5 de junho próximo, está fazendo mais. "É muito tempo dentro de mim, eu posso explodir", disse ele, não muito antes de se suicidar em 1984, e como que entrevendo em si mesmo uma enigmática multiplicação cronológica, uma temporalidade metamorfoseada, na qual os autobiografemas se acresciam de heterobiografemas sem conta, a sua inscrição cartorial, de classe e de "clã", desapertava-se, rodopiando multiplicada numa barafunda compósita, tão elegíaca quanto foliona, a circunstância local do seu vivido saltava para o universal, o balão cativo das lembranças pessoais se tornava imenso balão coletivo das memórias expandidas. Há muito mais do que cem anos aí. Antes de se matar, ele já patenteara essa multiplicação cronológica nos seis livros já publicados: "Baú de Ossos", de 1972, "Balão Cativo", de 1973, "Chão de Ferro", de 1976, "Galo das Trevas", de 1981, "Círio Perfeito", de 1983 ("Cera das Almas", o que vinha escrevendo, ficou incompleto). A cada um desses livros, seus leitores pareciam ser tomados (continuam sendo) por uma pergunta: "Mas onde estava isso antes?". O isso referia-se não só à aparição súbita, meio ctônica, desse verdadeiro maciço literário, desse monte Pascoal literário, quando o seu autor beirava os 70 anos, cumprira exitosa carreira científica e clínica, e sua atividade literária podia ser contada em poucos e antigos registros de protagonista do modernismo dos anos 20, de poeta incluído por Manuel Bandeira numa antologia de poetas bissextos, embora fecundo e especial prosador de assuntos e temas da medicina (os livros "Território de Epidauro" e "Capítulos da História da Medicina", ambos da década de 40, devem ser publicados). Acredito que o isso da pergunta dos leitores, e que parece lhes unificar o assombro, se refere mais aos dons que as memórias do escritor cearense-carioca-mineiro redispõem, o mobiliário sociocultural que elas arrastam de novo, nos dando assim desconhecidos posição e assento a uma certa matéria e experiência brasileiras que retornam, ou melhor, que sobrevêm ao nosso presente de uma maneira que levou Otto Lara Resende a dizer, diante dos originais de "Baú de Ossos": "Trata-se um livro fundador, pois sozinho dá notícia de toda uma cultura".

Notícia
Certamente não terá também escapado a Otto Lara Resende que essa notícia é dada, nas memórias de Nava, de uma forma parecida àquela com que Ezra Pound referia-se à literatura: como uma notícia que continua sempre notícia, tal é o regime da memória que há nelas, tal é a sua potência de escrita, sua invenção ou reinvenção estilística, as quais como que "estouram" as tintas da notícia, dando a esta uma verdade e direção para lá do noticiado, e ela mesma -essa obra que tem como profusa e muito mexida matéria a experiência brasileira- se constituindo numa experiência brasileira. Um modo de presença de Pedro Nava da cultura brasileira. Proponho uma hipótese (é só uma, haverá outras, de interpretação dessa obra que é como objeto não de todo identificado em nossa literatura). Uma hipótese para o isso da indagação dos leitores, para essa feição de astro sem atmosfera e contrapassante das memórias e para a multiplicação cronológica aludida acima: multiplicação que é tão mais fascinante porque é também e especialmente multiplicação identitária, pois na obra de Nava o eu reminiscente ("titular" do memorialismo brasileiro no seu conjunto, sob a forma do que Darcy Ribeiro chamava de "senhorito fidalgo evocativo") se transforma em sujeito expandido da memória, o um vira uns, multifário e multitudinário, o cartorial da origem vira experiência e fábula da identidade, conquista de um nada no bolso ou nas mãos.

Viagem identitária
O "Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais", com que se inicia "Baú de Ossos", paráfrase de trecho de uma carta de Eça de Queirós ("Eu sou um pobre homem da Póvoa do Varzim"), não é queixa de quem arreia o fardo do viver logrado, mas voz de uma persona muito compósita, senha e "leitmotiv" de uma imensa viagem identitária, estilística e mesmo civilizacional que ali se inicia. A hipótese é a seguinte: é que, aqui, ao contrário do memorialismo predominante em nossas letras, a memória não é evocação de um fanado, mas modo de presença do não-lembrável. Não é reconstituição de um ícone perdido, é antes adivinhação do passado. Não é suspiro da reminiscência, mas ação póstuma que sobrevém ao já extinto. Não é rol de lembranças, é memória vidente; não é arrumação piedosa do passado, é repovoamento visionário.

Alforria literária
Essa condição vidente da memória talvez só se realize, diante dos leitores, pela utilização, pelo Nava/narrador, de uma espécie, muito pessoal, de escrita "providencial" (providencial num sentido análogo àquele com que Antonio Candido fala na "linguagem providencial do barroco", com que os escritores brasileiros dos séculos 17 e 18 deram expressão e identidade literária à colônia). É que tal escrita, feita de uma mescla estilística de conformação tão vária quanto eficaz, diferentemente do naturalismo de fundo em que o memorialismo entre nós ampara seu rito evocativo familiar e doméstico, vai buscar seus materiais e procedimentos tão longe quanto possível, numa larga e supreendente alforria literária e cultural.
Que se lembre a esse respeito as irresistíveis enumerações que há na obra de Pedro Nava, na qual a circunstância local e os autobiografemas não receiam "desnaturar-se", indo buscar em repertórios, códigos, assentamentos literários e históricos supostamente remotos sua plena figuração emancipada (e mais de acordo com a vida atópica, para frente e para trás, e de tudo assujeitada, que é a da memória). Assim, a escrita das memórias se torna exploração literária e cultural também visionária do nosso ser histórico -uma arqueologia e uma imaginação da nossa identidade. Já se vê: o modo de presença Pedro Nava da cultura brasileira tem muito mais de cem anos e parece, pelo proposto acima, que ainda o terá muitas vezes.


José Maria Cançado é autor de "Memórias Videntes do Brasil - A Obra de Pedro Nava", que deverá ser publicada pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais, e de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta), sobre Carlos Drummond de Andrade.


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