São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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Para historiador inglês, livros infantis que fazem sucesso atualmente são antiquados e podem expressar a nostalgia por parte de seus autores de um mundo em escala mais humana

Bruxas, rainhas e cavaleiros reciclados

Peter Burke

No último mês eu não pude escrever para o Mais! porque nossos netos, Marco, 4, e Lara, 2, estavam hospedados conosco, e meu trabalho consistia em ajudar a entretê-los. Além de jogar futebol e passear no parque com eles, esse entretenimento inclui ler para eles livros em inglês e em português, pois os dois estão crescendo bilíngües. Lara gosta de olhar os desenhos e, de vez em quando, arrancar uma página do livro, mas Marco quer que eu lhe explique as ilustrações, além de ler as histórias. "O que eles estão fazendo? Por quê?" Quando ele volta para casa, as primeiras palavras que me diz freqüentemente são "leia meu livro!" e, mais tarde, quando chegamos ao fim do livro, "de novo!". Marco sabe do que gosta, e entre seus favoritos figuram clássicos tradicionais, como "Chapeuzinho Vermelho" e "Pinóquio" (ambos traduzidos para o português), e uma prateleira inteira de livros em inglês, como "What Do People Do All Day?" [O Que as Pessoas Fazem o Dia Inteiro?], de Richard Scarry, a série de histórias de Ben Blathwayt sobre "The Little Red Train" [O Pequeno Trem Vermelho] e "The Gruffalo", de Julia Donaldson, este em parte pelo ritmo da história e em parte pelas ilustrações de Axel Scheffler.

Rip van Winkle invertido
Esses livros ingleses específicos não existiam quando eu era criança. O que me surpreendeu mais enquanto eu os lia e relia -já conheço alguns deles quase de cor- é a semelhança que eles e muitos outros parecidos possuem, tanto em termos de temas quanto de estilo, com os livros de que eu mais gostava quando tinha a idade de meus netos. Isso me faz me sentir como um Rip van Winkle invertido. Na história holandesa sobre esse personagem, Rip van Winkle adormece por algumas horas ou é o que ele pensa -mas, quando volta para casa, cem anos já se passaram e tudo está mudado. Ele esperava que tudo permanecesse igual e encontrou tudo diferente. Já, eu, esperava que tudo fosse diferente, mas encontrei tudo igual. Apesar das transformações sociais e culturais dos últimos 60 anos, o mundo desses livros infantis se manteve surpreendentemente estável. Existem três temas principais: animais, o passado e o mundo cotidiano. Embora veja muito poucos animais à sua volta em Istambul, onde vive a maior parte do tempo, graças a esses livros Marco é capaz de reconhecer e nomear, em duas línguas, animais suficientes para lotar um zoológico de dimensões médias, de antílopes a zebras. Um tipo de livro sobre animais fala da selva e descreve elefantes, girafas, leões, tigres, macacos, crocodilos e cobras. Outro tipo de livro sobre animais gira em torno de uma fazenda, geralmente uma fazenda tradicional britânica ou do norte europeu, com arados, paióis, vacas e cavalos, ovelhas e cães pastores, galinhas e -para acrescentar um toque dramático- uma raposa. Dessa maneira, milhões de crianças que nunca entraram em uma fazenda -nem tampouco, por sinal, em uma selva- e que apenas de vez em quando foram a um zoológico estão mais familiarizados do que eu com a aparência e os hábitos de toda uma gama de animais, que inclui bichos imaginários, como o monstruoso "gruffalo". Um segundo tipo de livro moderno para crianças é ambientado no passado, essencialmente na Idade Média européia, sendo repleto de cavaleiros e damas, reis e rainhas, magos e bruxas, castelos e palácios (a série Harry Potter leva essa tradição adiante). Dessa maneira, milhões de crianças que vivem em cidades modernas e nunca viram uma rainha ou um castelo, exceto na Disneylândia, são capazes de reconhecer todas essas imagens, e alguns entusiastas conseguem até mesmo dar nome às diferentes partes da armadura de um cavaleiro (eu mesmo me orgulhava de conseguir fazê-lo quando tinha 7 ou 8 anos).

Peças de museu
O mais surpreendente de todos é o terceiro tipo de livro, supostamente sobre o cotidiano atual, mas que, na prática, oferece uma imagem do passado. Por exemplo, o hoje famoso trenzinho vermelho é um trem a vapor, alimentado de carvão e que solta uma espessa fumaça preta. Ainda me lembro, com alguma dificuldade, de trens desse tipo em Londres na década de 1940, mas, para as gerações posteriores, eles não passam de peças de museu. Outro exemplo: "What Do People Do All Day?"é um livro sobre o cotidiano, mas o que mostra é uma cidade pequena repleta de lojas pequenas -o açougue, a padaria, a peixaria, a quitanda etc.-, um mundo povoado por policiais amigáveis, vendedores e bombeiros (os favoritos de Marco), sem os supermercados e os shoppings que fazem parte da realidade da maioria dos leitores. O autor do livro, Richard Scary, nasceu em 1919, mas continuava a criar o mesmo tipo de livro para crianças perto do final do século 20. Para um historiador cultural, como eu, esse tipo de continuidade cultural é fascinante, mas problemática. Por que os livros infantis que fazem sucesso são tão antiquados? Por que eles continuam a repetir os mesmos temas? Será que seus autores simplesmente reciclam a obra de seus antecessores ou será que esses temas os atraem por alguma outra razão? Uma resposta a essas perguntas talvez consista em tomar nota de alguns poucos casos de histórias modernizadas que soam como uma resposta à ascensão do feminismo. Em "Room on the Broom" [Tem Lugar na Vassoura], por exemplo, a bruxa não é mais uma mulher malévola, mas boazinha. Em "The Princess Knight" [O Cavaleiro-Princesa], a heroína derrota todos os cavaleiros que combate (Lara provavelmente vai gostar dessa história dentro de um ou dois anos). Mesmo assim, o mundo da magia e das vassouras de bruxas, no primeiro caso, e das espadas e dos escudos, no segundo, ainda é o mesmo que o das gerações anteriores. Outra possível resposta a minhas perguntas é que determinados temas são intemporais -são os temas que mais agradam às crianças, porque estas estão mais próximas dos animais, psicologicamente falando, do que estão os adultos, assim como estão mais próximas do mundo das fazendas e cidades pequenas, e também porque estão mais próximas das batalhas nas quais uma pessoa golpeava a outra na cabeça, em lugar das batalhas modernas, nas quais um soldado pressiona um botão que, por sua vez, dispara um míssil que destrói uma cidade inteira.

Distância dos leitores
Esses argumentos possuem alguma força, embora eu tenha minhas dúvidas sobre a idéia de "intemporalidade". Quando surgiram os primeiros livros para crianças, na Europa do século 18, a distância entre o mundo dos livros e o mundo no qual vivia a maior parte dos leitores ou ouvintes crianças não era muito grande. Ainda existiam muitos reis e rainhas, os soldados ainda usavam alguma armadura e espadas, e ainda se acreditava amplamente na existência de bruxas. Mas a distância entre o livro e seus leitores vem se ampliando paulatinamente, a ponto de hoje estar enorme.
Assim, às vezes me pergunto se os autores dos livros infantis de hoje não escrevem primeiramente para eles mesmos, expressando sua própria nostalgia de um mundo que era erguido em escala mais humana. O que as crianças desejariam, se tivessem a possibilidade de escolher? As crianças lêem os livros que lhes são dados ou que encontram nas seções infantis das livrarias e bibliotecas, e a maior parte do que existe à sua disposição segue linhas tradicionais.
Seria interessante vermos alguns livros infantis que incluíssem objetos contemporâneos, tais como celulares, supermercados ou os computadores que as próprias crianças passam cada vez mais tempo usando. É possível que já existam alguns livros desse tipo, mas, até agora, nem Marco nem eu os descobrimos.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (ed. Jorge Zahar) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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