São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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Marx Mon amouer

Arno Balzarini - 25.jan.2003/France Presse
Ativistas antiglobalização usam máscaras em Fideris, perto de Davos (Suíça), em protesto contra a obrigatoriedade de revista em estação de trem a caminho do Fórum Econômico Mundial


PARA O CIENTISTA POLÍTICO, REDUZIR A GLOBALIZAÇÃO À LUTA ENTRE EXPLORADORES E EXPLORADOS LEVA "MULTIDÃO", DE HARDT E NEGRI, A GIRAR NO VAZIO E A PROPOR SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS PARA PROBLEMAS REAIS

por Francis Fukuyama

Muito antes de o 11 de Setembro e a guerra do Iraque colocarem a idéia na cabeça de todo mundo, Michael Hardt e Antonio Negri tinham popularizado a noção de um império moderno. Quatro anos atrás, eles afirmaram em um livro amplamente discutido -intitulado "Império" [ed. Record]- que o globo está dominado por uma nova ordem imperial, diferente das anteriores, que se baseia na dominação militar declarada. Esta não tem centro; é administrada pelos Estados-nação ricos do mundo (particularmente os Estados Unidos), por corporações multinacionais e por instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional. Esse império -conhecido como globalização- é explorador, antidemocrático e repressivo, não apenas para os países em desenvolvimento, mas também para as pessoas excluídas no Ocidente rico. O novo livro de Hardt e Negri -"Multitude - War and Democracy in the Age of Empire" [Multidão - Guerra e Democracia na Era do Império, ed. Penguin, 352 págs., US$ 27,95]- afirma que o antídoto para o império é a realização da verdadeira democracia, "o governo de todos por todos, uma democracia sem qualificadores". Eles dizem que a esquerda precisa deixar para trás conceitos antiquados como proletariado e classe trabalhadora, que simplificam exageradamente as diversidades de gênero/ raça/etnia/classe do mundo atual. No lugar deles, propõem o termo "multidão" para capturar o caráter "comum e singular" daqueles que se situam em oposição aos ricos e poderosos. Esse livro -que vagueia de análises das regras de propriedade intelectual e animais modificados por engenharia genética a discursos sobre Dostoiévski e o mito do Golem- trata de um problema imaginário e de um problema real. Infelizmente, ele nos oferece uma solução imaginária para o problema real. O problema imaginário deriva da compreensão básica dos autores sobre economia e política, que em seu âmago permanece imutavelmente marxista. Para eles, simplesmente não existe um intercâmbio econômico voluntário, apenas hierarquia política coercitiva: qualquer divisão desigual de recompensas é uma evidência prima facie de exploração. A propriedade privada é uma forma de furto. A globalização não tem nenhum benefício redentor (a ascensão da Ásia Oriental da posição de Terceiro Mundo para a de Primeiro Mundo nos últimos 50 anos não parece ter registro em seu mapa mental). De modo semelhante, a democracia não está incorporada em constituições, partidos políticos ou eleições, que são simplesmente manipuladas para beneficiar as elites. A metade dos americanos que vota nos republicanos evidentemente não faz parte da multidão do livro. A tudo isso Hardt e Negri acrescentam uma teoria extremamente confusa, sua visão do que Daniel Bell rotulou de sociedade pós-industrial e que foi mais recentemente chamado de "economia do conhecimento". O "trabalho imaterial" dos trabalhadores do conhecimento difere do trabalho na era industrial, dizem Hardt e Negri, porque não produz objetos, mas relações sociais. É inerentemente comunitário, o que implica que ninguém pode legitimamente se apropriar dele para objetivos particulares. Os programadores da Microsoft podem ficar surpresos ao descobrir que, como colaboram mutuamente, seus programas pertencem a todo mundo. É difícil saber até como abordar esse conjunto de afirmativas. A globalização é um fenômeno complexo; ela produz vencedores e perdedores entre ricos e pobres, igualmente. Mas o leitor jamais conheceria essas complexidades lendo "Multidão". Então passemos ao problema real de Hardt e Negri, que se refere à governança global.

Desafio real
Nesta altura da história humana desenvolvemos instituições políticas democráticas razoavelmente boas, mas somente no nível do Estado-nação. Com a globalização -e os crescentes fluxos de informação, bens, dinheiro e pessoas através das fronteiras-, hoje os países têm melhores condições de ajudar, mas também de prejudicar, uns aos outros. Na década de 1990, o dano era sentido basicamente por meio de choques financeiros e perdas de empregos e, depois do 11 de Setembro, adquiriu também uma dimensão militar. Como afirmam os autores, "o resultado da atual forma de globalização é que certos líderes nacionais, tanto eleitos como não-eleitos, adquirem maior poder sobre populações fora de seus próprios Estados-nação".
Os Estados Unidos estão envolvidos de maneira singular nessa acusação devido a seu enorme poderio militar, econômico e cultural. O que enlouqueceu as pessoas ao redor do mundo na abordagem unilateral do governo Bush à guerra do Iraque foi sua afirmação de que não teria de responder a ninguém, senão aos eleitores americanos, pelo que faz em partes distantes do globo. E, já que instituições como as Nações Unidas estão despreparadas para lidar com a legitimidade democrática, esse déficit de democracia é um desafio real e constante em nível internacional.
Os autores estão conscientes da acusação de que eles, assim como os manifestantes antiglobalização em Seattle que eles celebram, não têm soluções reais para essas questões, por isso passam mais tempo discutindo como consertar as atuais instituições internacionais. O problema é que qualquer conserto é politicamente difícil de efetuar, senão impossível, e promete apenas benefícios marginais. As instituições democráticas que funcionam no nível de um Estado-nação não funcionam em nível global. Uma verdadeira democracia global, em que todos os bilhões de pessoas da Terra realmente votassem, é um sonho impossível, enquanto as propostas existentes para modificar o Conselho de Segurança da ONU ou mudar o equilíbrio de poder entre ele e a Assembléia Geral são azarões políticos. Tornar o Banco Mundial e o FMI mais transparentes é um projeto válido, mas dificilmente solucionaria a questão subjacente da responsabilidade democrática. Enquanto isso, os Estados Unidos colocam empecilhos a novas instituições, como o Tribunal Penal Internacional. É nesse ponto que Hardt e Negri abandonam a realidade -chegando a uma solução imaginária para seu problema real. Eles afirmam que, ao invés de "repetir antigos rituais e soluções desgastadas", precisamos começar "uma nova investigação para formular uma nova ciência da sociedade e da política". A imprecisão da análise subseqüente é notável. Segundo eles, o obstáculo fundamental à verdadeira democracia não é apenas o monopólio da força legítima detida pelos Estados-nação, mas a dominação implícita em virtualmente todas as hierarquias, que dá a certos indivíduos autoridade sobre outros. Os autores revestem a antiga utopia marxista do encolhimento do Estado com a linguagem contemporânea da teoria do caos e dos sistemas biológicos, sugerindo que as hierarquias deveriam ser substituídas por redes que reflitam o caráter diverso e comum da "multidão".

Estados mais fortes
A dificuldade dessa linha de raciocínio é que existe toda uma classe de questões que as redes não podem solucionar. É por isso que as hierarquias persistem, dos Estados-nação às corporações e departamentos de universidade, é por isso que tantos movimentos de esquerda que alegavam falar em nome do povo acabaram monopolizando o poder. Na verdade, a falta de poder e a pobreza no mundo atual não se devem ao excesso de poder dos Estados-nação, mas à sua fraqueza. A solução não é minar a soberania, mas construir Estados mais fortes no mundo em desenvolvimento.
Para ilustrar, vejam-se as trajetórias de crescimento muito diferentes da Ásia Oriental e da África subsaariana na última geração. Duas das economias de crescimento mais rápido no mundo atual estão nos países mais populosos, China e Índia; a África subsaariana, em contraste, viu sua renda per capita declinar tragicamente no mesmo período. Pelo menos parte dessa diferença é conseqüência da globalização: a China e a Índia se integraram à economia global, enquanto a África subsaariana é uma parte do mundo que mal foi tocada pela globalização ou pelas corporações multinacionais.
Mas isso levanta a pergunta de por que a Índia e a China conseguiram tirar vantagem da globalização, e a África, não. A resposta tem a ver em grande parte com o fato de que as primeiras têm instituições governamentais fortes e desenvolvidas, que fornecem estabilidade básica e bens públicos. Elas só precisaram abrir caminho para os mercados privados para desencadear o crescimento. Em contraste, os Estados modernos eram virtualmente desconhecidos na maior parte da África subsaariana antes do colonialismo europeu, e a fraqueza dos Estados da região foi a origem de seus problemas desde então.
Assim, qualquer projeto para consertar os males do "império" deve começar com o reforço, e não o desmantelamento, das instituições no nível dos Estados-nação. Isso não solucionará os problemas de governança global, mas certamente qualquer progresso real virá apenas por meio da inovação lenta e paciente e da reforma das instituições internacionais. Hardt e Negri deveriam lembrar-se da antiga visão do marxista italiano Antonio Gramsci, adotada mais tarde pelos verdes da Alemanha: o progresso não será alcançado com sonhos utópicos, mas com uma "longa marcha através das instituições".

Onde encomendar Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/3170-4033).

Este texto foi publicado no "New York Times Book Review".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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