São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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+ história

REVOLUÇÃO NO ESTUDO DA BIBLIOGRAFIA LEVOU DISCIPLINA A ULTRAPASSAR O ÂMBITO DOS LIVROS E INVESTIGAR OUTRAS FORMAS CULTURAIS, COMO MÚSICA, FOTOGRAFIA E ARQUITETURA

OS IMPRESSORES DA MENTE

por Robert Darnton

Por que a bibliografia é importante? Não se trata apenas de fazer uma lista de livros -o tipo de exercício que costumava ser imposto aos alunos por seus professores e que pode ser reduzido a uma fórmula padronizada (autor -começando pelo sobrenome-, título, editora, data e local de publicação)? Para que nos preocuparmos com coisas desse tipo se agora podemos buscar textos diretamente no ciberespaço, desligados de suas âncoras bibliográficas? Não teria a fórmula antiga sido relegada à obsolescência, substituída pela moderna (conectar-se, descarregar da rede, imprimir)? A primeira resposta nos chega sob a forma de um aviso: cuidado! O ciberespaço está se enchendo de lixo. As palavras que você vê na sua tela podem não corresponder àquelas de que você precisa. Elas podem vir de fontes impuras, ter sido contaminadas por programas defeituosos ou desaparecer no futuro, por problemas como a invalidação de links. Nunca confie num texto que não venha acompanhado de um atestado de saúde bibliográfico. Mas pode haver uma solução para esses problemas. Os técnicos estão trabalhando para encontrá-la. Os computadores de amanhã, quem sabe, já virão equipados com filtros que façam o lixo desaparecer. Se pudermos obter um "Hamlet" limpo, nem abastardado nem expurgado, para que nos preocuparmos com detalhes como local e data de publicação? O espaço e o tempo parecem ter sido abolidos pela internet, que torna tudo disponível em todo lugar e ao mesmo tempo, como os museus e as bibliotecas infinitos e imaginários sonhados por Borges e Malraux. Teóricos e filósofos da literatura já levaram essa fantasia ainda mais adiante, na medida em que apagaram a fronteira entre a literatura, vista como corpus de textos vinculado a um núcleo de clássicos, e a prosa da vida cotidiana. Se toda a expressão pode ser entendida como "escritura" (Barthes), interpretada como discurso (Michel Foucault), reduzida a tropos (Hayden White), jogada como jogos de linguagem (Wittgenstein), compreendida como atos de discurso (Austin) ou lida como texto (Paul Ricoeur), então, por mais que se busque um chão sólido, se é condenado a vagar a esmo num ermo semiótico. Os textos literários não irão diferir de nenhum conjunto de sinais, e a literatura pode existir só na mente dos leitores, a julgar por Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Stanley Fish e toda uma escola de teóricos da recepção. Livros desencarnados não merecem ser acompanhados pela menção de suas origens -autores, editoras, locais e datas de publicação. Para que, então, nos preocuparmos com bibliografias?

A época de ouro da edição
A segunda resposta a essa pergunta diz respeito à própria natureza da bibliografia. Ela pode não ser mais do que uma lista de títulos, mas, em sua forma mais elevada, ela envolve o estudo rigoroso dos livros como objetos físicos. Ao analisá-los em sua dimensão física, a bibliografia quer compreender algo fundamental referente ao processo de comunicação -como, por exemplo, os pensamentos de Melville e Milne se concretizaram em sinais impressos sobre papel e foram transmitidos a leitores sob a forma de páginas encadernadas para formar livros. Sir Walter Greg, a autoridade máxima nesse tipo de bibliografia, a definiu como a ciência da transmissão de documentos literários.
Essa nova "ciência" tornou-se uma força poderosa nas ciências humanas durante a primeira metade do século 20, graças a uma geração de grandes bibliógrafos -Greg, R.B. McKerrow e H.G. Pollard-, que muniram a nova disciplina de padrões que, em pouco tempo, se fundiram numa ortodoxia. Em 1950, acadêmicos de toda a Grã-Bretanha e dos EUA já aceitavam a idéia de que, para poder estudar literatura, era preciso compreender os livros como objetos. A bibliografia virou requisito para o Ph.D. em muitos departamentos de língua inglesa. Ao lado da filologia e de outras habilidades profissionais, os alunos de pós-graduação aprendiam a reconhecer formatos, cotejar assinaturas, detectar supressões, distinguir tipos de letras, identificar filigranas, analisar artes e identificar encadernamentos. Os 50 anos seguintes se tornaram a época de ouro da edição. Um clássico após outro foi reaparecendo em traje acadêmico completo.
Os estudos shakespearianos, especialmente, floresceram nesse ambiente. Como Shakespeare nunca se preocupou em publicar suas peças e nenhum de seus manuscritos sobreviveu -ou virtualmente nenhum: ainda existem talvez três páginas dos fragmentos de uma peça inédita, "Sir Thomas More", em sua própria letra-, não possuímos versões definitivas de seus textos. Para ele, aparentemente, o que contava era a encenação, e ele provavelmente ia modificando os roteiros à medida que a ação no palco se desenvolvia. Podemos imaginar seus rascunhos primeiros e suas cópias da peça usadas pelo ponto, com anotações, mas, para encontrar seus textos, precisamos abrir caminho em meio às edições cheias de falhas produzidas pelas gráficas de sua época.
"Hamlet" saiu pela primeira vez em um in quarto de 1603, depois em um in quarto de 1604-5, duas vezes mais longo que o primeiro, e, depois, em um fólio de 1623, que tem 85 versos novos e difere muito de ambas as edições anteriores. "Rei Lear" apresenta tantos enigmas que seus editores mais recentes imprimiram duas versões da peça em "The Complete Oxford Shakespeare". Assim, hoje temos dois "Rei Lear", e isso nos enriqueceu, graças à bibliografia. Charadas textuais desse tipo vêm inspirando gerações de estudiosos a realizar proezas de virtuosismo bibliográfico desde a década de 1890, quando Greg e McKerrow começaram a desenvolver a chamada "nova bibliografia", quando eram estudantes no Trinity College, em Cambridge. O estudo detalhado de primeiras edições já levou bibliógrafos a rastrear pistas tipográficas de toda espécie -inconsistências ortográficas, irregularidades no espaçamento, tipos lascados, qualquer coisa que pudesse ajudá-los a reconstruir os processos de produção das gráficas elisabetanas e, com isso, chegar mais perto das primeiras edições desaparecidas das obras de Shakespeare. A bibliografia não desapareceu, mas foi posta de lado e deixada para trás pelas tendências mais recentes da erudição literária. Desde a nova crítica dos anos 1940 até a desconstrução da década de 1960 e o novo historicismo dos anos 1980, os textos foram se desligando, cada vez mais, de sua encarnação em livros. A bibliografia passou a ser vista como algo não apenas arcano, mas também arcaico. Ela desapareceu dos currículos de pós-graduação e de escolas de biblioteconomia. Para uma geração que assistira à queda do cânone e à ascensão da internet, a análise detalhada de livros raros perdeu seu poder de atração.

Um herético no meio
Em meio a todo esse autoquestionamento, aconteceu o inevitável: a heresia. Todas as ortodoxias geram hereges, mas o Martinho Lutero da bibliografia, Donald F. McKenzie, era visto pela velha-guarda como especialmente ameaçador porque era capaz de derrotar os melhores entre eles em sua própria especialidade. Tendo assimilado os princípios de Fredson Bowers e se transformado em gráfico perito, McKenzie deixou sua Nova Zelândia natal e se mudou para Cambridge, Inglaterra, onde escreveu uma tese de doutorado, sob a orientação do mestre bibliógrafo Philip Gaskell.
O livro resultante, "The Cambridge University Press, 1696-1712" (1966), foi saudado como um dos trabalhos mais rigorosos já escritos na tradição de Greg e McKerrow. Mas tinha um aspecto inquietante: não apenas fornecia uma análise bibliográfica de todos os livros produzidos pela Cambridge University Press durante os 16 anos mencionados como também relacionava as evidências físicas dos manuscritos encontrados nos arquivos da gráfica, e estes revelavam que as coisas não tinham se dado da maneira como deveriam, de acordo com as idéias aceitas.
Os compositores não forneciam aos impressores as formas (páginas de tipos dispostas num quadro de ferro e já trancados em seus devidos lugares, prontas para serem impressas) num padrão constante. Pelo contrário, o compositor mandava a forma completa para qualquer máquina que estivesse livre. A regularidade da produção ao nível do chão de fábrica compensava pelas irregularidades no trabalho de cada homem, numa maneira de organizar o trabalho que McKenzie chamou de "produção convergente". Quando ele analisou todas as implicações, parecia ter minado as próprias bases da bibliografia ortodoxa.
Os bibliógrafos anteriores partiam da premissa de que cada livro passaria pela cadeia de produção seguindo um padrão linear constante: um compositor determinado passaria formas para os gráficos de uma gráfica determinada, que produziria a edição, freqüentemente deixando rastros de sua atividade no padrão de títulos, linhas de direção ou figuras de imprensa deixados no papel. Seria possível, assim, construir uma série de inferências até chegar a uma gráfica, um compositor e, pelo menos até certo ponto, ao original, mesmo que estivesse faltando, como no caso de Shakespeare. Acima de todos, Shakespeare. A busca por textos confiáveis de suas peças era a mola propulsora de toda a disciplina.
Os principais bibliógrafos shakespearianos, especialmente Greg e Charlton Hinman, levaram as irregularidades em conta.
O estudo supremo de um livro da era de Shakespeare, "The Printing and Proof-Reading of the First Folio of Shakespeare" (1963), de Hinman, mostrou como o "primeiro fólio" apareceu enquanto outros livros estavam sendo impressos na mesma gráfica. Em dado momento, Hinman chegou a usar o termo "produção concomitante". Mas a maioria dos bibliógrafos pegou como unidade de análise o livro individual, e não a produção da gráfica inteira, e essa linha de raciocínio, embora fosse válida dentro de seus limites próprios, os levou a formular hipóteses questionáveis sobre os homens que produziram as primeiras cópias impressas de Shakespeare.

Os atores da trupe de Shakespeare provavelmente tinham corrigido as provas antes de os compositores acrescentarem correções de última hora para a impressão

Em lugar de trabalhadores de carne e osso, imaginaram abstrações fantasmagóricas: compositores que batizaram de A, B, C etc. e que eram vistos como tendo produzido de acordo com os princípios da ciência bibliográfica. Entretanto, se a gráfica operasse segundo o princípio da produção concomitante, seria difícil determinar padrões de produção precisos, e a cadeia de inferências poderia se romper em momentos cruciais. A, B, C e todos os outros poderiam ser apenas frutos de imaginações bibliográficas, meros "impressores da mente". Foi esse o título que McKenzie deu a um ensaio de 1969 que abalou o mundo dos livros raros como um terremoto, pois parecia ter exposto uma falha sísmica que percorria sua disciplina inteira -a não ser que ele tivesse entendido tudo errado. Para provar que ele estava errado, o campo dos seguidores de McKerrow e Bowers apresentou dois argumentos: primeiro, que a Cambridge University Press, uma firma pequena e especializada aberta numa cidade de interior no início do século 18, não poderia ser usada como exemplo das grandes gráficas de Londres que a antecederam em quase um século; segundo, que a evidência dos manuscritos não podia ser decisiva em argumentos baseados nas características físicas dos livros.

Raciocínio dedutivo
McKenzie foi buscar a resposta ao primeiro argumento nos papéis de William Bowyer, um grande impressor de Londres, descobertos em 1963. Eles confirmaram o princípio da produção concomitante e revelaram padrões ainda mais complexos e irregulares no fluxo de trabalho. Alguns anos mais tarde, Jacques Rychner demonstrou que a análise de McKenzie também era válida para a produção de livros na gráfica da Société Typographique de Neuchâtel (Suíça). É verdade que os arquivos de Cambridge, Londres e Neuchâtel eram todos originários do século 18. Mas não tinham ocorrido mudanças significativas na tecnologia de impressão entre 1500 e 1800. As três fontes de manuscrito, as únicas que se sabia terem sobrevivido daquela época, provavam que McKenzie tinha razão. Mas será que manuscritos poderiam valer como provas? Liderados por G. Thomas Tanselle, um dos principais discípulos de Bowers, os bibliógrafos ortodoxos disseram que não. O que fazia a bibliografia ser verdadeiramente científica, aos olhos deles, era o fato de não aceitar qualquer coisa que não pudesse ser inferida da inspeção dos próprios livros. Como a química ou a física, uma ciência baseada em livros tinha que ser fundamentada no mundo físico. Se não fosse, poderia sair voando em inferências e interpretações que poderiam ser tão subjetivas quanto qualquer variedade de crítica literária. McKenzie retrucou fazendo a defesa do raciocínio dedutivo, das hipóteses falsificáveis e do rigor interpretativo baseado em fatos históricos. A discussão, pontilhada por citações de Bertrand Russell, Karl Popper e Thomas Kuhn, ficou atolada em desentendimentos quanto a o que poderia ser visto como científico (admito que escrevo tomando o lado de McKenzie na discussão). Mas ela possuía um fascínio peculiar porque fazia perguntas sobre a natureza da ciência no contexto da literatura. Os velhos "novos bibliógrafos" se baseavam em conceitos que remetiam ao século 19 e podiam ser caracterizados como positivismo textual. McKenzie aproximou a nova bibliografia da epistemologia mais problemática das chamadas "ciências humanas" do século 20 e a abriu para a ampla variedade de história sociocultural que estava se desenvolvendo na França na época. Quem saiu ganhando? Hoje já parece claro que foram ambos. Em 2000, quando os bibliógrafos comemoraram o 600º aniversário do nascimento de Gutenberg -ele teria nascido em 1400, mas, na realidade, sabemos muito menos sobre ele do que o pouco que sabemos sobre Shakespeare-, várias publicações deram provas da vitalidade da aplicação do estilo Greg ao estudo dos livros do final da era medieval e início da moderna. Com as novas técnicas de análise de papel, tinta e tipos, especialistas como Paul Needham, Richard Schwab e Blaise Agüera y Arcas transformaram nossos conhecimentos sobre como foram produzidos os primeiros livros impressos. Análises bibliográficas adicionais dos livros da época de Shakespeare também aprofundaram nossos conhecimentos de seus textos. Em "The Texts of King Lear and Their Origins" (1982) e "The First Folio of Shakespeare", o catálogo de uma exposição magnífica realizada na biblioteca Folger em 1991, Peter Blayney tratou de cada aspecto do "primeiro fólio", desde as negociações entre os primeiros gráficos para conseguir o original até a formação de coleções em bibliotecas modernas. Blayney também mostrou que os atores da trupe de Shakespeare, a Companhia dos Homens do Rei, provavelmente tinham corrigido as provas antes de os compositores acrescentarem correções de última hora durante o processo de impressão. E a primeira publicação incluiu três edições distintas: uma tinha 35 peças; uma tinha 36, incluindo "Troilus e Cressida", mas sem o prólogo desta, e outra tinha 36, com "Troilus" completa com o prólogo. Os gráficos espalharam pistas dessas irregularidades nas marcas deixadas no texto. O texto estava sempre mudando, passando morfologicamente de um estado a outro.

O escritor profissional
Essa lição, tirada do "livro mais importante em língua inglesa", nas palavras de Helen Gardner, se estendeu do "primeiro fólio" para os livros do início da era moderna de modo geral e reforçou um dos principais argumentos de McKenzie. Ao romper com a tradição de Greg, ele tinha abandonado a idéia de que os críticos textuais deveriam rastrear as obras até uma fonte original pura. McKenzie desenvolveu esse ponto num influente ensaio de 1977.
A primeira lei de direitos autorais apareceu em 1710. Intitulada "Uma Lei para o Incentivo do Aprendizado pelo Investimento das Cópias de Livros Impressos nos Autores ou Compradores de tais Cópias durante os Tempos nelas Mencionados", o chamado Estatuto de Anne conferiu nova distinção aos autores.
Embora não chegasse a mencioná-los em seu texto, reconhecia seus direitos de proprietários sobre o fruto de suas imaginações. Daniel Defoe e Alexander Pope mostraram que os autores podiam sustentar-se com a venda desses direitos. Na metade do século, Samuel Johnson era o paradigma do escritor profissional, sobrevivendo de sua pena em lugar de viver de patronato e comprazendo-se em seu papel de suprir a demanda do mercado literário.
A própria literatura emergiu como sistema semi-autônomo organizado em torno do livro impresso, em contraste com o mundo das letras dos séculos 16 e 17. Sob a égide dos Tudor e dos Stuart, a comunicação na esfera pública ocorria principalmente por meio de apresentações: no palco, em púlpitos, nos tribunais, nas ruas. Na Inglaterra da era georgiana, a predominância passou para a palavra impressa, embora os livros manuscritos continuassem a circular (se o número de cópias publicadas fosse inferior a cem, um livro podia ser produzido a um custo mais baixo sendo copiado à mão do que sendo impresso), e as notícias ainda eram difundidas pelo sistema boca-a-boca.
Assim, McKenzie anunciou que a transformação das letras em literatura precisava ser entendida dentro de uma perspectiva ampla, algo ao qual ele chamou "a sociologia dos textos". Da ciência à sociologia, nada poderia estar mais distante da disciplina de Greg, McKerrow e Pollard, mas ela abriu um caminho para a bibliografia anglo-americana formar uma junção com a "histoire du livre" francesa, uma espécie de história do livro extremamente ampla desenvolvida por Lucien Febvre e Henri-Jean Martin. Em "L'Apparition du Livre" (1958), eles relataram o impacto do invento de Gutenberg sobre fenômenos sociais e econômicos de longo prazo, tais como a organização das escrivaninhas, o preço de trapos e pergaminhos e o desenvolvimento das rotas comerciais.
Enfatizaram a necessidade de evidências quantitativas para medir a continuidade e compará-la às transformações. E, como partidários da escola histórica dos Anais, detectaram padrões duradouros de estabilidade estrutural, o que os levou a desafiar as idéias largamente aceitas -especialmente a de que Gutenberg teria revolucionado as indústrias da comunicação.
Para eles, a invenção dos tipos móveis desacelerou o processo de transformações, porque os primeiros livros impressos perpetuaram as características arcaicas das obras manuscritas, em lugar de fazer experiências ousadas com estilos novos.

Interesses comerciais conservadores chegaram a dominar o comércio de livros mesmo em tempos revolucionários

McKenzie tentou algo semelhante ao estudar o comércio livreiro de Londres como um todo, por meio de três cortes cronológicos feitos em todas as evidências sobreviventes de 1644, 1668 e 1689. Ao examinar tudo o que tinha sido impresso num único ano, ele aplicou o princípio da produção concomitante à produção de livros em todo o setor. Uma pesquisa nessa escala exigia uma quantidade prodigiosa de trabalho, porque McKenzie combinava as quantificações baseadas em sua fonte principal, o "Short-Title Catalogue" de livros impressos entre 1641 e 1700, de D.G. Wing, com um exame de cada cópia que pudesse localizar nas principais bibliotecas de pesquisas.

Revisionismo
Em relação a 1668, Wing e algumas fontes adicionais forneceram um total de 491 títulos, dos quais McKenzie estudou fisicamente 458. Ele não conseguiu fazer uma descrição analítica completa de cada um deles, mas seu olho perito detectou diversas tendências e vários pontos inesperados. Os nomes dos impressores não apareciam em mais da metade das páginas de rosto. Quase um terço da produção total era formada de novas tiragens. E apenas 52 livros ostentavam alguma forma de licença ou autorização oficial para serem publicados, apesar das exigências da Lei de Licenciamento, de 1662. A principal preocupação dos livreiros era proteger seus próprios direitos, e isso eles podiam fazer por meio de "combinações" informais feitas entre eles, como acordos para fazer marketing e vendas conjuntos. A impressão que se tinha era a de que os impressores e os livreiros faziam seu trabalho sem prestar muita atenção à política e sem desenvolver muita sede de inovações. Interesses comerciais conservadores chegaram a dominar o comércio de livros mesmo em tempos revolucionários. Ao examinar quase tudo aquilo publicado em 1644, no auge da guerra civil inglesa, McKenzie constatou um grau surpreendente de continuidade na produção global, principalmente de livros, em oposição a sermões e panfletos. Ele rejeitou o argumento proposto por Christopher Hill e Keith Thomas, segundo o qual uma explosão inusitada de literatura política teria ocorrido no início dos anos 1640 em razão da liberdade da imprensa. Nem o fim do controle do Estado, em 1641, nem sua restauração, em 1643, exerceram grande efeito sobre o setor dos livros, argumentou McKenzie, porque os livreiros continuaram a buscar seus lucros das maneiras já conhecidas, sem preocupar-se com as mudanças na lei. Quando a revolução de 1688 gerou mais uma mudança nas regras do jogo e, em 1695, chegou ao fim a censura prévia à publicação, McKenzie mais uma vez enxergou isso como prevalência da continuidade e dos interesses econômicos, muito mais do que sinal do triunfo da liberdade. A Companhia dos Papeleiros perdeu seu monopólio sobre o comércio de livros, mas seus membros continuaram a dominar o setor. Na Inglaterra, assim como na França, a quantificação levou a resultados revisionistas: as tendências socioeconômicas de longo prazo pareciam pesar mais do que as mudanças políticas passageiras. McKenzie foi o único bibliógrafo que podia desafiar as idéias largamente aceitas, trabalhando em dois registros: a bibliografia analítica e a enumerativa. Mas não foi dele a última palavra. Ele não teria querido que fosse. Dois livros publicados após sua morte, em março de 1999, dão uma idéia de suas realizações e daquilo que seu trabalho abriu, para que pudesse ser continuado e aprofundado por outros.

Desmontando idéias fixas
O primeiro deles, "Making Meaning - "Printers of the Mind" and Other Essays", editado por dois de seus antigos alunos, Peter D. McDonald e Michael F. Suarez, S. J., reúne seus ensaios mais importantes num único volume, organizados habilmente por tema e introduzidos de uma maneira que destaca sua originalidade. Eles mostram a mente de McKenzie em ação, desmontando idéias fixas e extraindo idéias novas mesmo dos materiais mais resistentes. Além disso, levantam uma pergunta: poderia a grande tradição que remonta a Greg desabar como "um castelo de cartas bibliográficas", como sugeriu McKenzie em alguns de seus momentos mais pessimistas?
O segundo livro, "Books & Bibliography - Essays in Commemoration of Don McKenzie", mostra que a resposta a essa pergunta é "não". Nele, uma dúzia de historiadores dos livros discutem hipóteses aventadas por McKenzie ao longo dos últimos 30 anos. Eles levam o princípio da produção concomitante para as gráficas do século 19, analisam as interações entre meios de comunicação orais e impressos e estudam a transmissão de textos no sentido mais amplo do termo -em música, fotografia e arquitetura. McKenzie ensinou que a bibliografia pode ultrapassar o âmbito dos livros. Ao seguir suas deixas, uma geração posterior mostrou que a bibliografia oferece uma maneira de compreender a reprodução de formas culturais, sejam elas quais forem, desde que se prestem à descrição rigorosa.
Enquanto isso, os campos tradicionais de pesquisa continuam a se expandir. Não apenas os bibliógrafos já penetraram mais fundo no mistério que cerca Gutenberg e Shakespeare, como também resolveram alguns dos problemas que deixaram McKenzie perplexo, décadas atrás. Depois de passar muitos anos estudando os documentos de Bowyer, Keith Maslen constatou que a análise preliminar de McKenzie envolveu alguns erros de cálculo que o levaram a tirar conclusões exageradas quanto aos padrões de trabalho erráticos entre compositores e gráficos. Um núcleo de veteranos mantinha um ritmo de produção bastante regular na gráfica de Bowyer, apesar das variações de curto prazo na produção de alguns indivíduos.
Mas a conclusão básica de McKenzie permanece válida: as irregularidades na produtividade individual eram compensadas pela coordenação do trabalho na gráfica como um todo. Ademais, os trabalhos freqüentemente eram divididos entre diversas gráficas, gerando uma certa padronização nos produtos finais. A produção concomitante se espalhou pelo setor gráfico inteiro, e parece mais duvidoso do que nunca que um bibliógrafo possa identificar folhas específicas como tendo sido o trabalho de compositores específicos com o simples exame físico dos livros.


Robert Darnton é professor de história na Universidade Princeton (EUA) e autor de, entre outros, "Edição e Sedição" (Companhia das Letras).
Tradução de Clara Allain.


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