São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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Erudito e acessível, "Poetas Românticos, Críticos e Outros Loucos", de Charles Rosen, propõe uma redefinição do romantismo a partir de Balzac, Flaubert e Hölderlin

Contra as interpretações cabalísticas

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Dá um bocado de vergonha resenhar este livro. "Poetas Românticos, Críticos e Outros Loucos" [que sai em setembro] reúne dez resenhas escritas pelo musicólogo, pianista e crítico literário Charles Rosen desde a década de 70. A qualidade desses textos é extraordinária mesmo para os padrões do "New York Review of Books" ou do "Times Literary Supplement", em que foram publicados originalmente. Cada resenha -seja sobre as variantes de um texto de Balzac, as cartas de Flaubert, as "Origens do Drama Barroco Alemão", de Walter Benjamin, ou a loucura de poetas como William Cowper e Friedrich Hölderlin- equivale a um longo ensaio, sempre acessível ao leitor não-especializado, mas nunca simplificador ou concessivo. Ao contrário, uma das virtudes de Rosen é não recuar diante dos pontos mais obscuros de uma teoria ou diante da mais minuciosa discussão erudita. Como acontece no caso dos bons pianistas, tudo parece espantosamente fácil e interessante em suas mãos, mesmo que sejam as teorias dos românticos sobre a pontuação, os complexos esquemas de análise musical propostos por Heinrich Schenker (1857-1935), a pesquisa de Saussure em torno dos anagramas ocultos na poesia de Lucrécio, a polêmica entre Bernard Shaw e Ernest Newman a respeito de uma ópera de Richard Strauss ou a concepção benjaminiana das relações entre a palavra e a idéia.

O terror da revisão
Felizmente, a variedade de temas não desnorteia o leitor. Tome-se o primeiro ensaio, intitulado "O Texto Definitivo". Rosen começa citando a crença romântica segundo a qual as grandes obras literárias nascem prontas, de um jato, da mente do escritor. Resume então uma conhecida narrativa de Balzac, "A Obra-Prima Ignorada": trata-se da história de um pintor que leva dez anos fazendo e refazendo um único quadro -o qual termina, é claro, virando um monte de borrões caóticos. "Esse conto moral sobre os efeitos aterrorizantes da revisão", diz Rosen, "sofreu revisão sistemática após ter sido impresso em 1831". Alguns dos acréscimos e mudanças feitos por Balzac na primeira versão do conto são em seguida apresentados e avaliados com invejável senso de nuança -até Rosen concluir, de forma bastante persuasiva, que "as diversas variantes de "A Obra-Prima Ignorada" constituem uma obra mais profunda e original do que qualquer texto publicado isoladamente". Pausa; o ensaio passará então por novos desenvolvimentos, analisando historicamente como surge a idéia de um texto "definitivo" e intocável. A questão será retomada a propósito das diversas versões feitas por William Wordsworth, ao longo de 40 anos, de seu poema "The Prelude". Sem que percebêssemos, o ensaio fez na verdade a resenha de diferentes edições das obras de Balzac, de Wordsworth e também de Byron. Um motivo básico será retomado em praticamente todos os outros capítulos do livro. Rosen propõe, sem muito alarde, uma redefinição do conceito de romantismo, que faz deste volume um complemento valioso a uma das principais obras musicológicas de Rosen, que já dispõe de tradução brasileira -"A Geração Romântica" (Edusp). Se, na música, a obra romântica tenderá a produzir a impressão de que está sendo criada no momento de sua execução -num aparente improviso-, no caso da literatura ocorre como que a dissolução do sentido fixo de cada palavra. As vagas experiências do "indefinível", do "absoluto", da "comunhão com a natureza", que tantas dificuldades impõem a quem quiser definir o romantismo dentro de um quadro conceitual claro, são aqui entendidas como conseqüências de "uma nova liberdade no uso do sentido" -ou seja, como a conquista de um inédito "poder de associação criado pela destruição total ou parcial do significado das palavras". O mundo clássico das definições precisas e das figuras imutáveis entrara em ruína; tudo se associava a tudo.

O código oculto
Nada mais natural que Rosen veja com antipatia, assim, as tentativas de "decifrar", como num código, as charadas que determinado autor supostamente ocultaria na própria obra. Num dos raros momentos de impaciência do livro, o autor critica as freqüentes análises cabalísticas que se fazem dos motivos musicais de Schumann, assim como certas interpretações alegóricas dos quadros de Caspar David Friedrich. Na obra daquele pintor romântico, diz Rosen, "o quadro tem uma significação, mas nenhuma mensagem". Não há, prossegue, "indício de que Friedrich visse imagens da morte numa interrupção num renque de árvores ou num barco em água rasa. Mesmo que descobríssemos -improvavelmente- que ele de fato acreditava nisso, então estava enganado". Pois a forma de seus quadros, argumenta Rosen, não se coaduna com esse tipo de simbologia.
Não estamos longe das discussões sobre a fragmentação alegórica e o uso de "emblemas" fixos no teatro barroco alemão, empreendidas por Benjamin em sua obra clássica. O texto de Rosen sobre Benjamin poderia parecer datado (foi escrito em 1977, quando boa parte da obra desse autor ainda não fora traduzida para o inglês), mas ainda hoje se mostra esclarecedor e surpreendente. Em cerca de 30 páginas, começando do zero -isto é, pressupondo que o leitor nada conheça sobre a obra do crítico-, o ensaio não só apresenta os primeiros trabalhos de Benjamin, mas também os relaciona com as idéias de Humboldt, Riegl e Mallarmé, além de propor interpretações de obras da literatura inglesa (o "Otelo" de Shakespeare, um poema de Donne) à luz da obra benjaminiana.
Os trechos mais duvidosos deste livro são os que se referem à crítica musical de Bernard Shaw. Com razão, Rosen elogia os textos jornalísticos do dramaturgo pelo que têm de divertido, idiossincrático e eficaz. Também aprova, contudo, o tom voluntariamente injusto e petulante dos textos de Shaw . Diga-se, em favor de Rosen, que seu livro não tem nenhuma dessas qualidades. Sua permanente urbanidade crítica, aliada a uma quase impiedosa erudição, o situam num plano superior ao de seu modelo.


Poetas Românticos, Críticos e Outros Loucos
276 págs., preço não-definido de Charles Rosen. Tradução de José Laurênio de Melo. Ed. Ateliê (r. Manuel Pereira Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/xx/11/ 4612-9666).



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