São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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AS PALAVRAS DA HORA


Com 62 mil verbetes, o "Dicionário de Usos do Português do Brasil", elaborado pelo lexicógrafo Francisco Silva Borba e sua equipe, radiografa os últimos 50 anos da língua escrita no país, baseando-se sobretudo em textos jornalísticos


Evanildo Bechara
especial para a Folha

Resultado de muitos anos de pesquisa e descrição, o "Dicionário de Usos do Português do Brasil" do conhecido linguista Francisco Silva Borba, com a colaboração de uma equipe altamente qualificada e com a apresentação gráfica sempre impecável da editora Ática, chega às mãos dos estudiosos e do consulente comum, numa época de extraordinária produção lexicográfica brasileira. Está claro que o "Dicionário de Usos" vem desempenhar, essencialmente, as mesmas funções de todo bom dicionário, isto é, oferecer ao leitor resposta adequada ao significado de palavra ou expressão que desconhece ou da qual tem apenas uma leve idéia e do emprego adequado em dado contexto e situação.
Todavia os dicionários mais recentes quase sempre não vêm para substituir os mais antigos. Ainda hoje não prescindimos do velho Morais, de 1813; do Aulete, de 1881; do Figueiredo, de 1899; ou do Laudelino, de 1939. É que o autor e a equipe responsável se guiaram por postulados teóricos diferentes -e às vezes até ingênuos- e, por isso, acabaram por nos oferecer características que os distinguem e das quais, muitas vezes, não podemos prescindir.
Entre as características da lexicografia moderna entre nós, duas nos chamam logo a atenção: o deslindamento, sempre que possível, entre enciclopédia e dicionário; e a invasão de informações gramaticais no domínio do léxico.
O "Dicionário de Usos", de Borba, aproveitando o progresso da chamada linguística textual, da pragmática e dos estudos sobre aquisição do vocabulário, concentra-se em três objetivos fundamentais: a) "Prover os usuários da língua escrita de um instrumento eficiente de agilização do uso escrito tanto na recepção quanto na criação do texto", isto é, não pretende ser uma obra de utilização passiva na descodificação da palavra desconhecida que tem pela frente, mas do movimento de descoberta de que precisa para utilizá-la criativamente na elaboração do seu texto;
b) "estimular a pesquisa vocabular e a reflexão sobre o próprio uso da língua", isto é, passar de um mero conhecimento intuitivo da palavra a um conhecimento reflexivo;
c) "fornecer elementos de avaliação das propriedades sintático-semânticas do léxico", isto é, a organização do verbete ministra também ao consulente informações sobre várias relações gramaticais da palavra com as que entram no contexto em que está inserida, o que patenteia como se encontra efetivamente usada e a maneira como se distribui num amplo círculo de gêneros textuais e com relativa presença das várias regiões do país, pertencentes às literaturas romanesca, dramática, técnica, oratória e jornalística. Principalmente a esta última, para garantir multiplicidade de temas e autores, que buscam refletir a experiência de uma comunidade que escreve sobre seus conhecimentos, emoções, sentimentos e visões do mundo nesses últimos 50 anos do século 20.
O público em geral manifesta-se favoravelmente diante do maior volume de palavras que um dicionário encerra, na convicção ingênua de que tanto melhor ele será quanto mais milhares de termos verbetados contiver. Na realidade, estatísticas têm demonstrado que o léxico fundamental, efetivamente usado por um falante médio, gira em torno de 2.000 palavras, ainda que se trate de línguas tão diferentes como o inglês, o francês, o espanhol, o japonês e o chinês, não ficando de lado o português.
Dada a amplitude e variedade do corpus ou banco de dados compreendido na recolha da língua escrita em prosa no Brasil, a partir de 1940 foram levantadas mais de 70 milhões de ocorrências, das quais se obtiveram 530 mil formas diferentes, que, lematizadas, chegaram a quase 90 mil itens lexicais que permitiram atingir 62 mil entradas no "DUP".
Para atingir os objetivos de um dicionário não só descritivo, mas também normativo, a organização dos verbetes teve de contemplar critérios tradicionais na elaboração de uma obra dessa natureza, acrescidos de outros ditados por normas particulares à concepção da equipe responsável. Diante de um corpus tão rico quanto diversificado, o critério de entrada é, naturalmente, o da ocorrência combinado com o da colocação textual, aliado a outras particularidades estruturais da palavra em questão, como a alternância sufixal ("batimento" e "batição"; "estimação" e "estima"), o registro do gênero ("o personagem" e "a personagem") ou a grafia ("taverna" e "taberna"; "boate" e "buate"). Cuidado, nesse sentido, mereceu a grafia dos estrangeirismos, exemplificado esse cuidado na opção por "show" (e não "xou"), "álibi" (e não "alibi"), "superávit" (e não "superavit"), estes dois últimos se opondo à norma oficial.
Subsídio gramatical acrescido no verbete oferece ao consulente informação de como a língua se organiza patenteada em exemplos de usos efetivos do sistema, quer no nível das variedades, culta ou coloquial. O uso dos colchetes assinala a referência ao sistema da língua, e o uso dos parênteses, antes das definições, às variedades de nível social.
Entre as informações de natureza gramatical, conta o consulente com certas particularidades de substantivos que se usam com traços opositivos, como concreto/abstrato (uma fatia de "abacaxi"/ eu acertei esse trabalho, que é um "abacaxi"), contável/não-contável (dispor no braseiro o "peixe" embrulhado em folha de bananeira/ todos se alimentam de "peixe" fresquíssimo), animado/ não-animado (o "macaco" está na jaula/ hoje deu 17, "macaco" na cabeça), humano/ não-humano (ela era um "avião"/ viajou de "avião").
Na lexicografia tradicional, tais particularidades eram conhecidas como emprego "figurado" e "não-figurado", concepções ligadas a uma orientação logicista da língua que hoje a linguística moderna ou não reconhece ou a que não dá importância de relevo. Muitas vezes a oposição concreto/abstrato fica sutil, o que dificulta a distinção pelo consulente, como é o caso, por exemplo, de "bandeira branca" do "DUP":
"[Concreto" 1. Pano branco que se mostra (ao inimigo) em sinal de trégua: "Pegue a bandeira. A bandeira branca (Alice acena com um guardanapo). Ora, vejam só. A bandeira branca. Peça água, vamos!" (HA)".
"[Abstrato de ação] 2. Proposta de encerramento de animosidades; proposta de trégua: "Achei magnânimo entrar em acordo e, com decência, estendi a bandeira branca: uma nota de 10 mil réis" (AS)."
Também os adjetivos verbetados passam por uma subclassificação: os qualificadores (aqueles que acrescentam um atributo do substantivo: "casa alta"; "garota inteligente") e os classificadores (aqueles que põem o substantivo numa determinada subclasse semântica: "dança campestre"; "taxas municipais"), levando-se ainda em conta os traços distintivos dos nomes, excetuando os casos em que esses traços não controlam a polissemia. Tomemos um exemplo parcial, ao acaso:
"Besta: Adj. [Qualificador de nome humano" 10. tolo, bobo: "Vê se eu sou besta de sustentar homem" (AB); 11. abobalhado, pasmado: "Um sonho que me deixou besta" (BO); 12. pretensioso, pedante: "Ah, sujeita besta" (CAS); "um viajante besta queria recitar" (MEC); [de nome não-animado] 13. insignificante, sem importância, à-toa: "Já se compra essa fruta besta" (JC); "Não diz uma frase besta" (OG) (...)".
O verbo mereceu do "DUP" classificação mais minuciosa ainda, mas que, dominada pelo consulente, lhe vai ministrar as sutilezas semânticas e sintáticas que a classe encerra para chegar a utilizações mais expressivas e adequadas do conteúdo de pensamento. Já no "Dicionário Gramatical de Verbos" (ed. Unesp), editado há anos, Borba e sua equipe nos ofereceram exuberante material de consulta e de pesquisa.
O "DUP", tão inovador em informar ao leitor particularidades semânticas, não poderia deixar de lado as construções sintáticas que envolvem a palavra ou expressão arrolada e descrita. Assim, o complemento ("Compl.") está sempre apresentado pela estrutura sintática que lhe é pertinente: "Aposto: a + nome ("É o título aposto a um rol de lembranças')"; "Reparar: (em +) nome ou oração conjuncional; 5. notar, perceber: "Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil" (CP); "Já reparei que os maranhenses de hoje se queixam mais do que trabalham" (TS); "Você ainda não reparou como é que a velha trata a Carmencita?" (LA)".
A leitura deste e de outros verbetes do "DUP" enseja-nos um comentário final e de extraordinária repercussão do nível de valor de que se há de revestir uma obra de tal natureza perante o leitor comum. Pela tradição dicionarística, a elaboração lexicográfica, com especial atuação, tem de tratar da língua culta ou padrão, que é mais importante do ponto de vista educativo e cultural, pois que é nela que se plasma a maioria dos textos escritos sobre os temas superiores da inteligência e da cultura nacional.
Desde logo, deixemos bem claro que tal iniciativa não pressupõe o descaso nem o menosprezo pelas outras variedades, regional, familiar ou popular, que se aprendem no intercurso com a comunidade, e não na escola.
Se, por um lado, o dicionário que se monta com um corpus extraído "com absoluta predominância de literatura jornalística" é muito válido "na medida em que é aí que há não só variedade de autores, mas principalmente grande variedade de assuntos e enfoques" -como se lê no "DUP"-, por outro pode, com essa absoluta predominância, não consignar usos linguísticos correntes na variedade escrita dita exemplar, de registro imprescindível pela natureza normativa de que deve se revestir uma obra de tal envergadura e destinação. Cresce essa responsabilidade normativa quando o cultivo do idioma não conta com uma agremiação consubstanciada e de pleno respaldo público do porte da Academia Espanhola ou da Academia Francesa, para lembrar as mais conhecidas entre nós. A Academia Brasileira de Letras se aparelha para colaborar nesta atividade, prevista nos seus estatutos.
De uns tempos a esta parte é verdade que o estudo e descrição da língua falada (tão vivamente presente em universidades, com muita oportunidade) têm merecido mais atenção dos linguistas e de outros especialistas das ciências da linguagem. Isto, todavia, em mãos inábeis de professores de língua e de didática, tem produzido o desastroso efeito de rejeição dos usos da língua padrão escrita e de textos literários nela vazados, sob o falso pretexto de se tratar de uma imposição da classe dominante, classe que ninguém identifica com clareza. Felizmente, entre representantes das primeiras hostes, já se vai assistindo, ainda que com certa discrição, a um estado contrastivo dos dois níveis (o falado e o escrito). A reação chega tardiamente, mas sempre é tempo de rever a trajetória. O apelo é antigo entre linguistas descritivistas do porte de Mattoso Câmara e de um teórico da importância de um Eugenio Coseriu; é também velha entre escritores de nacionalidades diferentes, como o espanhol Pedro Salinas, em palestra antiga de mais de meio século, incluída no livro "A Responsabilidade do Escritor e Outros Ensaios".
Mas voltemos ao "DUP", em relação à norma gramatical nele consignada por imposição do corpus. Compare-se o que dele foi transcrito antes sobre o verbo reparar com o que diz o dicionário de Aurélio, para a mesma acepção 5: "6. Fixar a vista ou a atenção em; observar, ver, notar: "Repara, Marília/ o quanto é mais forte" (Tomás Antônio Gonzaga, "Marília de Dirceu", p. 122); "Não sei se vossemesê, andando pelo sertão, já se deteve a reparar a alma das casas" (Viriato Correia, "Histórias Ásperas", p. 173); "Não reparou que d. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços" (Machado de Assis, "Várias Histórias", p. 56). [Em geral só se admite o uso do verbo, nesta acepç., como transitivo indireto; no exemplo de Machado de Assis, é lícito considerar elíptica a prep. em, podendo a abonação estar, portanto, entre as da acepç. 8" (...) T.I. 8. Fixar a vista ou a atenção; atentar: "E só então reparou em como também o seu cabelo era dum castanho bem claro, quase louro" (Lúcio Varejão, "Visitações do Amor", p. 30); "Ó Lemos, repara naquela senhora que ali passa" (Artur Azevedo, "Contos Cariocas", p. 65); "Ninguém reparou no luto de Joana, ninguém quis saber quem lhe morrera" (Xavier Marques, "Jana e Joel", p. 153). [Cf. reparar (6).]".
Conclui-se desta leitura do verbete que a língua literária ministra exemplos do verbo reparar com a prep. "em" junto não só a termos nominais ou substantivos, mas também a oração substantivas conjuncionais (na classificação do "DUP"). Acrescente-se que, ao lado das conjuncionais, a construção com "em" pode ocorrer com as orações reduzidas: Ele reparou em ela dar a resposta com a maior presteza.
É possível que num riquíssimo banco de dados recolhido na literatura jornalística para a montagem do "DUP" não tivessem aparecido exemplos da construção literária "reparar em que", e, por isso, o verbete não a pudesse registrar. A experiência com o "DUP" poderia ser repetida para aqueles verbos que apresentam usos mais contrastivos entre o nível de português tenso ou formal e o do português distenso ou informal, quando comparado com o Aurélio, o Houaiss e o Michaëlis.
Diante desses casos, o consulente se convenceria de que o português desses últimos 50 anos teria abandonado, por arcaica, tal maneira de se expressar por escrito, ou que o verbete peca por falta de exaustividade na informação sobre os usos gramaticais do verbo reparar.
Tal impressão seria em tese apressada, além de constituir uma injustiça a esse excelente produto lexicográfico que é o "DUP", que considero o mais tecnicamente completo na descrição lexical de quantos já se elaboraram em língua portuguesa.


Evanildo Bechara é membro da Academia Brasileira de Letras, filólogo e autor de "Moderna Gramática Portuguesa" e "Lições de Português pela Análise Sintática" (ed. Lucerna), entre outros.


Dicionário de Usos
do Português do Brasil
1.674 págs., R$ 119,90 de Francisco Silva Borba. Ed. Ática (r. Barão de Iguape, 110, CEP 01507-900, SP, tel. 0/xx/ 11/3346-3000).



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