São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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Um campo de desigualdades


"O Campesinato na História" e "Chiapas" reúnem ensaios que buscam recensear os problemas agrários desde a Grécia Antiga até a América Latina hoje


Bernardo Mançano Fernandes
especial para a Folha

Desde a segunda metade do século 19, muitos cientistas elaboraram teorias e vaticinaram o fim do campesinato por diversas vezes.
Primeiro foi a teoria da desintegração do campesinato, em que, por meio da diferenciação social resultante da desigualdade gerada pelo desenvolvimento do capitalismo, os camponeses seriam transformados em trabalhadores assalariados e alguns poucos em capitalistas. Depois foi a teoria da metamorfose, em que os camponeses seriam transformados em agricultores familiares, este eufemismo que tem como pano de fundo a tentativa de aliciamento de parte das organizações camponesas pelo capital.
A primeira teoria foi elaborada no final do século 19 pelos intelectuais do então socialismo emergente, que entendiam o campesinato como um grupo social em extinção tanto na sociedade capitalista quanto na futura sociedade socialista, onde seriam organizados como trabalhadores das cooperativas estatais coletivistas. A segunda teoria foi elaborada no final do século 20 pelos intelectuais do paradigma do capitalismo agrário, que compreendem o campesinato como um grupo social atrasado que, para continuar existindo, precisa aceitar a subordinação ao capital, metamorfoseando-se em "agricultor familiar".
Em 1992, camponeses de todos os continentes organizaram a Via Campesina, que congrega organizações como a Confederação Camponesa da França, da qual José Bové é um dos membros, e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), sem dúvida a maior expressão camponesa no Brasil das últimas décadas. A Via Campesina representa a falácia da teoria da desintegração e é um desafio aos teóricos do capitalismo agrário, porque não desapareceram e recusam a ideologia da agricultura familiar. E uma das marcas históricas do campesinato é precisamente a luta contra a subalternidade.
Para compreender melhor esse debate secular, dois novos livros estão sendo lançados. São "O Campesinato na História", publicado em co-edição pela Relume-Dumará e Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), e "Chiapas", co-edição da Paz e Terra e o jornal "La Jornada", do México.
"O Campesinato na História" foi organizado pelo professor André Leonardo Chevitarese. O livro é fruto de um encontro realizado em outubro de 2000 pelo Laboratório de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também contou com a participação de pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Espírito Santo, Universidade Metodista de São Paulo e Universidade Metodista de Piracicaba, bem como de representantes do MST e da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
Trata-se de uma coletânea de textos selecionados por temas referentes às questões teóricas e metodológicas do campesinato, reunidos no debate a respeito da identidade camponesa e de suas lutas de resistência.
Aos estudiosos da questão agrária e a outros interessados no assunto, o livro traz uma importante contribuição para a compreensão das diferentes leituras do campesinato na história. Os autores expõem tanto os resultados de suas pesquisas quanto as análises dos estudos de outros pesquisadores. Rompem com os obstáculos disciplinares e cronológicos, fazendo interagir conteúdos e realidades desde as lutas dos camponeses no século 5º a.C. até as reivindicações do MST.
É interessante observar os conflitos entre latifundiários e camponeses no Baixo Império Romano ou a luta pela terra na Grécia Antiga, possibilitando uma leitura desses enfrentamentos desde o século 8º a.C. ao século 5º d.C.
Sem dúvida, os conteúdos dos artigos têm em comum a marca da resistência do campesinato. Em todas as épocas e lugares, em todas as sociedades -escravocrata, feudal ou capitalista-, os camponeses se mobilizaram pela conquista da terra contra a expropriação e a exploração, mas sobretudo para continuarem sendo produtores familiares. Essas questões podem ser compreendidas, por exemplo, na leitura do texto "Os Camponeses na Idade Média - A Violência da Jacquerie (Maio de 1358) na Visão de Jean Froissart", de Ricardo da Costa. Ou em "Inserção e Desagregação - Terra e Sistema Republicano Romano", de Norma Musco Mendes.
Igualmente, no Brasil, essa marca está presente, como demonstra o estudo de Leonilde Servolo de Medeiros, que analisa as lutas dos trabalhadores rurais desde o século 19 até hoje, quando a questão agrária brasileira é intensificada por um conjunto de políticas impostas pelo governo federal. Já Regina Novaes analisa essa realidade por outro ângulo, o olhar feminino das camponesas, relatando as ações de Elizabeth Teixeira, Margarida Maria Alves e Diolinda Alves de Souza, em três tempos e três conceitos: camponesa, trabalhadora rural e sem-terra.
O outro livro, "Chiapas", organizado por Alejandro Buenrostro y Arellano e Ariovaldo Umbelino de Oliveira, é uma reunião de artigos publicados principalmente no periódico "La Jornada", desde janeiro de 1994 até janeiro de 2000. Os artigos foram escritos por diversos profissionais, entre eles o antropólogo Armando Bartra, da Unam (Universidade Nacional Autónoma de México), e a filósofa Fernanda Navarro, da Universidade Mexicana de San Nicólas de Hidalgo, que também é membro da Frente Zapatista de Libertação Nacional.
A primeira parte do livro é composta por comentários dos escritores José Saramago e Miguel Vázquez Montalbán, do professor de teoria literária Antonio Candido, do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, do sociólogo José de Souza Martins e do bispo dom Pedro Casaldáliga, em que apresentam suas leituras sobre o movimento indígena e campesino de Chiapas, iniciando o leitor ao conjunto de artigos a seguir. Neles são relatados e analisados os acontecimentos e seus desdobramentos no conflito entre os chiapanecos e o governo mexicano, que ganhou repercussão internacional.
Na parte referente aos artigos jornalísticos, os capítulos foram organizados por temas, facilitando a leitura e a compreensão do conflito de Chiapas. Desde a origem histórica do movimento até as formas de resistência construídas no enfrentamento com o modelo de desenvolvimento econômico do governo, discutindo a questão étnica, a autonomia política dos indígenas e campesinos e o questionamento da democracia mexicana. Os autores fazem um intenso debate a respeito dos acordos entre o governo e Exército Zapatista de Libertação Nacional, com destaque para o acordo de San Andrés e os limites políticos do governo e do EZLN, que resultou em impasse, permanecendo o conflito.
No último capítulo, são relatados diversos tipos de violência contra os zapatistas, principalmente a respeito do massacre de Acteal, em 22 de dezembro de 1997, quando 45 pessoas foram assassinadas por um grupo paramilitar. A violência contra os movimentos camponeses é, assim, mostrada como resultado de sua não-aceitação pelos senhores da terra e do capital.
Da mesma forma, os camponeses dimensionaram as suas ações de resistência. A busca pela terra hoje faz parte da luta política pela transformação da sociedade, para que indígenas e camponeses sejam aceitos como qualquer outro grupo social. Quanto aos cientistas sociais e políticos, já vivemos o tempo em que é preciso declarar o fim do fim do campesinato, para que pesquisadores e governos possam elaborar e implantar políticas públicas que garantam a dignidade dessas populações.


Bernardo Mançano Fernandes é professor de geografia da Universidade Estadual Paulista e autor de "A Formação do MST no Brasil" (ed. Vozes), entre outros livros.


O Campesinato na História
302 págs., R$ 32,00 André Leonardo Chevitarese (org). Faperj/ed. Relume-Dumará (travessa Juraci, 37, CEP 21020-220, RJ, tel. 0/xx/21/2564-6869).



Chiapas
380 págs., R$ 30,00 Alejandro Buenrostro y Arellano e Ariovaldo Umbelino de Oliveira (orgs.). "La Jornada"/ed. Paz e Terra (rua do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3337-8399).



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